Olá, venener. Como você está neste belo sábado? Pois trago boas novas. Apesar do Painel do Fogo indicar que os fazendeiros seguem empoderados, as condições meteorológicas vão permitir que a gente respire melhor nesse fim de semana. Tenho monitorado a qualidade do ar todos os dias desde que a agrofumaça chegou aqui na minha casa, em julho. E essa sexta em que escrevo o Jornal foi o dia menos insalubre pro país inteiro. Melhorou até pra Bolívia, que vive uma situação ainda mais crítica que a nossa. Os próximos dois dias devem seguir esse padrão.
Aliás, você conhece essa ferramenta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)? Ela mede a quantidade de monóxido de carbono emitida pelas queimadas e pela indústria, de forma separada. Dá pra acompanhar por faixa de horário também e as previsões pros dias seguintes. Onde tem os tons em azul significa que se respira um ar decente. Verde já é risco moderado, amarelo é crítico pra pessoas consideradas “grupos de risco”. Laranja representa um ar péssimo e o vermelho é muito, mas muito grave. Num nível que nenhuma atividade poderia funcionar.
Outro respiro. Essa mesma sexta, 27 de setembro, é a única data em que a gente se liberta da preocupação com lista de ingredientes, corantes e maltodextrina nos doces hahahaha. É o dia de São Cosme e Damião, de homenagear os gêmeos considerados santos, que entregavam quitutes açucarados pra crianças doentes ou vítimas da violência na região da Síria, época do Império Romano. No Brasil, virou tradição do catolicismo popular e dos terreiros organizar a distribuição dos saquinhos de doce pra disseminar saúde e alegria, especialmente pra molecada. Na minha família materna sempre teve festa pra São Cosme e Damião e até hoje eu corro atrás dos saquinhos ansiosa por ela, a primeira de seu nome, a senhora dos sete reinos: a paçoca hahahaha.
Sempre vejo gente aproveitar a ocasião pra pautar o consumo de açúcar e ultraprocessados na infância. Mas já temos todos os outros dias do ano pra isso, né? Vamo respeitar as tradições, rituais e o sincretismo das pessoas.
Boa leitura e não esqueça de comentar no final! :)
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Queimadas agravam a crise do café e elevam os preços
Março de 2014. Na cidade de Yokohama, no Japão, cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (em inglês, IPCC) divulgavam a segunda parte do seu quinto relatório. Foi a primeira vez que o documento colocou o nosso cafezinho na lista dos principais mercados impactados pelo aquecimento da Terra.
Quando digo “nosso”, não me refiro apenas a quem vive no país da mandioca. O pequeno arbusto etíope começou a ser plantado em escala pelos árabes, foi na Turquia que virou protagonista das lanchonetes e até na China, terra do chá, seu consumo cresce 15% ao ano.
Mas assim como o personagem Sheldon Cooper, da série The Big Bang Theory, os pés de café não lidam bem com fortes emoções. Pra crescer, florescer e gerar frutos saudáveis a planta precisa de uma temperatura média anual maior que 15°C, mas que não passe dos 30°C. Se chover menos que 1.500 milímetros ao ano, o cafezeiro não chega a secar, mas desencanta.
Mesmo dentro do cenário favorável, a espécie arábica, a mais comercial, costuma receber um leque caprichado de agrotóxicos. Veja bem. Quem diria que uma árvore plantada sozinha por milhares de hectares sob um solo totalmente exposto ao sol e à chuva seria dominada por fungos e insetos, hein? Pois é. O último relatório de monitoramento de agrotóxicos da Anvisa, publicado no ano passado, identificou 12 resíduos de venenos diferentes em 158 amostras de café solúvel.
Voltando pro relatório dos cientistas, um aumento de 3ºC na temperatura global tornaria o desenvolvimento dos grãos impossível em Goiás e levaria a uma redução de 70 a 75% da produção em Minas, Espírito Santo e São Paulo. Em fevereiro de 2024, a temperatura média do planeta já superava a marca de 1,5°C acima da média registrada na era pré-industrial, dez anos mais cedo do que os climatologistas previam. Como o desastre parece mais rápido do que as projeções estipulam, não sabemos exatamente quando a Terra alcançaria esse aumento de 3ºC.
Na verdade, as conferências e acordos internacionais deveriam servir pra gente escapar de um desfecho catastrófico dessa magnitude. Mas se o mundo não consegue se juntar pra parar as atrocidades de Israel, quem dirá pra mudar o sistema econômico vigente.
Baseados no relatório do IPCC, vários pesquisadores brasileiros têm se debruçado sobre o futuro do café. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp), os cientistas publicaram projeções otimistas e pessimistas. Na simulação Pollyana, que inclui frear totalmente o aquecimento da Terra, as áreas aptas pro plantio do café reduziriam pra menos de 50% entre 2041 e 2060. No cenário mais apocalíptico, apenas 3,8% do território brasileiro conseguiria produzir café no período.
Antes do alerta ser publicado e se criar um clima fatalista sobre a bebida, ja havia sinais de preocupação. A produção nacional do grão acumula derrota atrás de derrota há muitos anos, inclusive entre produtores agroecológicos.
É expressiva a diferença entre os modelos de cultivo. Com a diversificação de espécies e os cuidados com a saúde do solo, o pessoal da agroecologia tem aumentado a resistência do café às intempéries, mas não a ponto de operar milagres diante dos recordes de temperatura, redução do volume de chuvas e queimadas criminosas.
Só no estado de São Paulo os fazendeiros têm substituído o café arábica por cana de açúcar, espécie mais resistente ao calor. De 1998 e 2008, a área de plantio do café encolheu 35% na região.
É duro constatar, mas não chega a ser surpresa. Desde a divulgação do relatório no Japão, só retrocedemos em práticas agrícolas questionáveis e nas questões ambientais relacionadas.
Não reduzimos o desmatamento no bioma responsável pelo equilíbrio do regime de chuvas no país, o Cerrado. Não endurecemos as leis pros crimes ambientais, como as queimadas ilegais. Não instituímos exigências mínimas no financiamento do agronegócio, como, por exemplo, exigir que o recebedor da grana não seja um infame de um ateador de fogo criminoso em época de seca, que não seja investigado por criar boi em área de preservação. Não iniciamos um projeto de transição de agricultura convencional pra agroecológica. Continuamos comemorando o aumento das exportações de carne e soja. Aprovamos, ainda, uma portaria pra ampliar o limite máximo de agrotóxicos aplicados nos pés de café. E, claro, no meio do percurso elegemos um presidente negacionista do clima somado a um congresso boiadeiro.
Setembro de 2024. Na cidade de Belo Horizonte, capital do estado do cafezinho, não chove há 150 dias, justamente na época da florada da planta. No interior, os agricultores ainda se desdobram pra apagar o fogo próximo às suas plantações. Resultado: a saca de café arábica, que custava R$800 no mesmo período do ano passado, chegou a R$1.500 neste mês.
Mesmo após uma leve trégua na alta dos preços em 2023, o valor da saca soma um aumento de 90% nos últimos quatro anos, chegando agora a custar R$50 o quilo do tipo mais simplão nos supermercados. Como se trata de uma mercadoria internacional, a chamada commodity, a alta do dólar também influencia no valor e atiça os produtores a focar na exportação pra lucrar mais.
Das duas bilhões de xícaras de café servidas mundo afora todos os dias, um terço parte do solo brasileiro. Vietnã, Colômbia e Indonésia completam o grupo dos maiores produtores e também já colhem fracassos decorrentes dos fenômenos climáticos extremos, principalmente o Vietnã.
Com exceção de quem insiste na produção de café dentro do sistema maravilhoso de agrofloresta, as saídas apontadas até o momento beiram a comédia. O povo da Embrapa sugere deslocar a produção pro Sul do país e modificar as espécies geneticamente pra se tornarem mais resistentes à seca.
Cientistas finlandeses foram mais criativos e não tiveram vergonha de lançar um café MOLECULAR. É aquela mesma bobagem futurista que culminou na almôndega de mamute extinto, no frango e no hambúrguer de laboratório.
Os abençoados pegaram uma célula do café arábica, despejaram num ambiente estéril e alimentaram a coitada com açúcar, minerais e um regulador de crescimento. No documento em que apresentam os resultados da epopeia, os finlandeses destacaram a questão da sustentabilidade do processo, o que tem sido exaltado também nas reportagens sobre o assunto, incluindo a imprensa brasileira. Afinal, nada mais integrado com o meio ambiente do que beber uma mentira sintética desenvolvida numa sala fechada com ar condicionado, né?
Uma startup dos Estados Unidos investiu numa ideia semelhante, porém mais auspiciosa. Levantou 11 milhões de dólares pra desenvolver um café molecular obtido de matérias-primas vegetais recicladas, sem uma única célula original de café. E a gente achando que o supermercado já nos surpreende o suficiente com produtos parecendo coisas que não são, hein? Um espresso elaborado a partir dessa iguaria já pode ser apreciado no Gumption Coffee, em Nova Iorque, desde o ano passado.
Sem a cafeína, nem as ideias iluministas ou talvez nem o capitalismo existissem. Essa é a tese defendida pelo jornalista Michael Pollan no audiolivro Caffeine, ainda sem tradução pro português. Segundo Pollan, a substância psicoativa nos torna mais focados, lineares, abstratos e eficientes. Então, à medida que uma economia se industrializa, a tendência é que o consumo de café cresça exponencialmente no local. Mas perceba a ironia. O mesmo sistema econômico que se beneficia da planta atua desenfreadamente pra extingui-la.
🪴SEGURA O CÉU
[Este é o novo quadro do Jornal do Veneno, que vai trazer iniciativas ecológicas e interessantes para macetar o apocalipse. O nome do quadro é inspirado no livro “A queda do céu”, escrito pelo antropólogo Bruce Albert e pela liderança yanomami Davi Kopenawa. Os yanomami entendem que a ganância capitalista dos brancos vai derrubar o céu, ou seja, destruir a vida humana na Terra]
Depois de 17 anos de espera sob ataques e invasões, o povo Munduruku finalmente deve receber a titulação da terra indígena Sawré Muybu. Na última quarta, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou a portaria de demarcação deste território, além de outros dois no Pará e de mais um no Mato Grosso. Os próximos passos envolvem a demarcação física da área e a canetada do presidente Lula, o que costuma ser mais rápido.
A área protegida a todo custo pelos Munduruku fica entre os municípios de Itaituba e Trairão, no sudoeste do Pará. Até março desse ano, tratava-se da segunda terra indígena mais desmatada do país por conta da invasão dos sojeiros, madeireiros e garimpeiros, garimpeiros que ainda contaminam os rios com mercúrio. Por isso a urgência recente do governo em acelerar o processo.
Outro ponto a comemorar é que conceder a posse oficial da terra aos Munduruku, como lhes é de direito, pode significar novos entraves ao projeto da ferrovia do agro.
Com 933 quilômetros de extensão, a Ferrogrão levaria as commodities agrícolas produzidas no Mato Grosso até a região Norte e funcionaria como alternativa de escoamento dos grãos pro exterior. Mas o projeto da ferrovia passaria a apenas 10 quilômetros do limite da terra indígena. É muito perto pro nível de impacto causado. Com a titulação em mãos, o cenário muda porque há um respaldo jurídico muito maior pra expulsar invasores e defender os direitos dos povos da região.
📝 Pra aprofundar: documentário Pés de anta, produzido por cineastas Munduruku, que conta o que tem sido feito pra barrar os invasores na adeia.
Fechamos por hoje?
Olha, também pensei em vir aqui comemorar a prisão daquele certo integrante do agronejo, mas lembrei que sou abolicionista penal hahahaha.
Ah! Na próxima segunda, dia 30, tem Colheradas exclusivas pra apoiadores daqui e do Catarse. Pra quem apoia via pix (jornaldoveneno@gmail.com) não tenho como enviar, mas as edições ficam abertas na página do Substack por 30 dias. Dá pra acessar de boa e acompanhar as minhas divagações de cunho mais pessoal hehehe.
Obrigada pela companhia, pela atenção e pelo apoio de sempre.
Um beijo em clima de reta final de eleições,
Juliana.
O dia tá lindo e sem fumaça mesmo, vou agorinha voltar ao pedal. Sou nordestina vivendo na tríplice fronteira, pense!! Não vejo a HR de voltar. É muito Agro aqui. Tava pensando no café esses dias, então quer dizer que é mais um coquetel de agrotóxicos, repensar aqui esse consumo diária religioso oĩ então tentar comprar algo orgânico e mamerar no uso. Melhor jornal! Gracias Ju, beijo na cria
Caramba, como viveremos sem café? Viva os erês!! Paçoca é vida!!!
Este quadro Queda do Céu é providencial para organizar nosso ódio.