Plano Clima, carnes e quilombolas #88
Mais a relação entre prefeitos ligados ao agro e o desmatamento
Olá, venener. Bom sábado pra você. Tô escrevendo essa edição depois de dormir 1h42min nessa madrugada por razões de ser mãe. Olha, um dia eu vou dar os detalhes do nível de milagre que eu opero pra seguir trabalhando hehehe.
Mais uma semana de ar insalubre e não só no Brasil, né? Enquanto isso, o Ministério da Saúde continua sem recomendar o uso de máscara nos municípios com a qualidade do ar mais comprometida, especialmente no estado do Acre, que tá um horror. No Distrito Federal, onde teve criança desmaiando em sala de aula por respirar fumaça, o governo local resolveu recomendar banho de mangueira e festival de picolé pra amenizar os efeitos da baixa umidade + calor + fuligem. Se eu tivesse perto dessa gente, não ia hesitar em dar uma cadeirada. Parece zoação com a nossa cara, sabe?
Além do veneno do ar, o babilônico veneno na comida também continua por aí. Recebi vários beliscões por ainda não ter escrito sobre a queda de braço dentro do governo Lula envolvendo o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara). Sim, tô acompanhando essa novela há tempos e esperando novidades mais quentes pra trazer pra cá. Acho que vem aí, hein?
As organizações que brigam pela agroecologia, ou seja, que oferecem uma contrapartida ao agronegócio, divulgaram uma carta beeeeem afrontosa direcionada ao esposo da Janja no 1º Encontro Internacional de Territórios e Saberes, que rolou em Paraty (RJ) e encerrou no dia 13. Pouco depois, o barbudinho soltou uma resposta como se tivesse descoberto agora que os pesticidas proibidos na União Europeia são aplicados a rodo em solo brasileiro. Mona, a pesquisa da professora Larissa Bombardi falando isso saiu em 2017. E por isso ela precisou sair fugida do Brasil!!! Então vamo ver se o presida vai se mexer mesmo e fazer o Ministério da Agricultura parar de boicotar o programa. Em breve, volto com detalhes e bastidores.
Mas essa premissa vale pra qualquer nação do mundo: diga quem é o teu Ministério da Agricultura e te direi quem és.
Boa leitura! :) Ah! Não esquece de comentar lá embaixo, não nos stories do Instagram, porque do contrário apenas eu serei presenteada com as tuas colocações pertinentes.
🌎 GIRO DE NOTÍCIAS
🪴PLANO CLIMA. Apesar do fogo seguir o mesmo ritmo de destruição nos nossos biomas, o tema perdeu espaço nas manchetes e debates de redes sociais nos últimos dias. Até o momento, minha leitura é que a discussão estacionou na possível dualidade entre “agronegócio” (que seria um setor moderno, eficaz, preocupado com a imagem do Brasil no exterior, contra as queimadas e que reconhece as mudanças climáticas) e o “ogronegócio” (a tal velha guarda maquiavélica, que insiste nas práticas criminosas e precisa ser responsabilizado).
Entidades que representam o setor agropecuário disseminam esse discurso, assim como o próprio governo Lula, jornalistas e parte dos ativistas ambientais. Um olhar apurado sobre fatos recentes, no entanto, reforça que essa dualidade é um mito, só serve de estratégia pra aliviar a barra dos agroempresários brasileiros.
Vamos aos fatos. No começo do mês, a secretária nacional de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni, marcou uma reunião com representantes desse estimado agronegócio “do bem” em Brasília. Os nomes convocados incluíram empresários como Marcello Brito, que se autointitula “agroambientalista” e João Adrien, vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira e profissional do setor agro do banco Itaú. A ideia do encontro era discutir a principal diretriz do país para o combate e adaptação às mudanças climáticas, o Plano Clima, que será apresentado na COP 29, em novembro, no Azerbaijão, além de elaborar as novas ambições do Brasil no Acordo de Paris.
Os dois objetivos passam pela nova meta de corte de emissões de gases que causam o aquecimento global referentes ao período de 2030 e 2035, e que todos os países que participam do pacto precisam entregar. O Acordo de Paris determina que essas metas precisam ser mais ambiciosas que as anteriores e os países do sul global costumam esperar que o Brasil puxe esse bonde.
No fim, a reunião em Brasília foi adiada e os empresários aproveitaram o momento de comunhão pra escrever um manifesto ao Ministério do Meio Ambiente. O conteúdo do documento é um deboche. O grupo, super amigo do meio ambiente, risos, pede o fim da meta de zerar o desmatamento até 2030. Ainda repete aquela papagaiada de que o setor agrícola é um pobre coitado, uma vítima das mudanças do clima.
Os empresários do agro não tão totalmente equivocados nos dados. O setor de combustível lidera mesmo as emissões de gases que aquecem a Terra. Mas a realidade brasileira se difere do padrão geral. O Brasil ocupa o sexto lugar no mundo em emissão de carbono justamente por conta do desmatamento e dos impactos da pecuária e da agricultura. O agronegócio brasileiro é responsável por 75% das emissões de gases do país e polui mais a atmosfera do que as atividades econômicas do Japão juntas.
Então vamos pensar aqui rapidinho. O agro sustentável-moderno-do-bem quer o fim da meta de desmatamento zero; não reconhece seu papel na catástrofe climática; não se posiciona abertamente contra o conjunto de 25 leis em votação no congresso que deve promover um imenso retrocesso ambiental; não entra na disputa contra o Marco Temporal dos povos indígenas; não defende o fim do financiamento ou a retirada das terras dos fazendeiros que provocam incêndios florestais. Nesse sentido, a diferença entre “agronegócio” e “ogronegócio” parece ser a mesma entre o Partido Liberal (PL) e o Partido Novo: o modelo do sapato de seus integrantes.
🐂RASTREAMENTO DAS CARNES. Esse período de queimadas históricas também tem alertado pela milésima vez: a gente paga um preço altíssimo por transformar o país em pasto. Mas não te parece que as pessoas ainda não conectam tanta destruição com uma bandeja do supermercado?
Pois antes do país começar a queimar, o Repórter Brasil já tinha investigado e apontado que o maior desmatador do estado do Mato Grosso, senhor Claudecy Oliveira Lemes, forneceu carne pra JBS, que repassa pros grandes supermercados do país. Agora, um relatório da organização gringa Mighty Eartch publicado na última terça-feira, dia 17, informou que o mesmo pecuarista criminoso também fornece pra outras duas gigantes da carne: Marfrig e Minerva.
Em resumo, o resultado da devastação equivalente a quatro vezes a cidade de Amsterdã, capital da Holanda, tá servido em badejas disponíveis nas prateleiras da rede Carrefour, Pão de Açúcar, Grupo Mateus e Sendas (que inclui o Assaí Atacadista). E tem mais um detalhe: o dono de 11 fazendas de gado no Pantanal é investigado por expandir a boiada com um artifício extra, o uso de mais de 25 tipos de agrotóxicos no solo, usados pra matar a vegetação nativa.
A campanha De onde vem essa carne, recém lançada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), busca chamar atenção pra origem do contrafilé e seus amigos. Segundo os dados da entidade, o Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (SISBOV) foi criado para organizar a rastreabilidade do setor, mas reúne menos de 1% do total de criadores. Pior: não existe nenhuma lei que obrigue o frigorífico e o supermercado a identificar a origem dos pedaços de animais. Isso quer dizer que todas as etapas da cadeia da carne favorecem e incentivam a ilegalidade, a devastação.
🌽OPÇÕES VEGETAIS OBRIGATÓRIAS. Não tem momento mais oportuno pra aprovar a lei proposta pela deputada Duda Salabert (PDT/MG). O projeto 1057/2024 prevê a obrigatoriedade da oferta de opções vegetais em todos os equipamentos públicos: escolas, universidades, ministérios, prefeituras, hospitais, presídios e tal. Pensando na conjuntura, no Brasil pressionado internacionalmente pelas queimadas, na proximidade da Conferência do Clima em Belém, acredito que há chances de aprovação sim. Afinal, o próprio congresso sabe que vai precisar ceder em algum ponto e servir cuscuz não faria os financiadores dos deputados perderem dinheiro, ao contrário de um projeto de confiscar terras desmatadas e queimadas. No momento, a proposta aguarda parecer do relator da Comissão de Saúde.
🥩RÓTULOS DE CARNE NOS EUA. Se você acha que o Brasil é bagunça, não custa lembrar do chaveirinho do capitalismo. Depois do órgão regulatório de alimentos dos Estados Unidos liberar as empresas de iogurtes pra afirmar que seus produtos previnem diabetes tipo 2, o que não tem evidência científica, surgiu mais uma novidade inacreditável. No começo de setembro, a Anvisa de lá anunciou a nova legislação pros rótulos de carnes de boi e aves diferenciados. É o grupo de bandejas que alega aquelas maravilhas nas embalagens: “criado ao ar livre”, “livre de antibióticos”, “sustentável”, “galinhas felizes”, “orgânico”.
As novas diretrizes apenas recomendam que as empresas comprovem essas alegações por meio de certificadoras, testes e análises. Ou seja, se houver uma inspeção e ficar comprovado que aquela peça de frango contém antibióticos, quando alega no rótulo que não tem, nada acontece. A empresa não vai sofrer nenhuma sanção, nem ao menos ser obrigada a mudar suas práticas. Inclusive já há estudos no país que comprovam que 20% das carnes que se dizem livres de antibióticos ainda contêm resquícios desses medicamentos. Surreal, mas não surpreende. Afinal, é o país da confiança total no setor privado, né?
🍉ALIMENTAÇÃO QUILOMBOLA. Outro tópico que não surpreende diz respeito às transformações nos hábitos alimentares e na saúde das populações tradicionais. O estado do Pará concentra a maior proporção de pessoas quilombolas em territórios demarcados do país, pessoas que, além da natureza, colhem as consequências da incursão agropecuária na região Norte.
Três comunidades quilombolas paraenses apresentam mudanças semelhantes: de suas roças brotam menos alimentos devido ao calor agravado pelas mudanças climáticas, pela redução da biodiversidade no entorno, e pela falta de mão de obra pro manejo, já que os jovens têm deixado os territórios pra trabalhar fora. A estrela das refeições ainda é a farinha de mandioca, mas a planta e o cará têm perdido espaço pro macarrão, pros biscoitos, frangos de granja, pão e outros alimentos ultraprocessados.
Localizados no município de Santa Luzia do Pará, os quilombos Jacarequara, Tipitinga e Pimenteir colhem mandioca, açaí, feijão, milho, murumuru, pescam e caçam pra subsistência, mas não o suficiente pra se ver menos dependentes do supermercado e da indústria. Esses dados são do estudo Comida de hoje, comida de ontem em quilombos na Amazônia Oriental do Pará, de autoria de pesquisadores da Embrapa.
Apesar do racismo ambiental e estrutural que se reafirma na falta de apoio e políticas públicas nesses territórios, os quintais das mulheres quilombolas ainda preservam os hábitos de gerações, ainda dão vida ao cará roxo. Os excedentes dessa produção sem veneno são vendidos pela Rede Bragantina de Economia Solidária Artes & Sabores, formada por 15 organizações que reúnem quilombolas e agricultores familiares.
Pra você ver que essa história de que não se produz comida na floresta sem desmatar ou que a Amazônia precisa de uma nova atividade econômica milagrosa pra frear a devastação é tudo balela. Na verdade, trata-se do projeto colonial e racista que a gente bem conhece.
🗳️ELEIÇÕES 2024
Milionários do agro comandam 34 prefeituras entre os 100 maiores municípios do país
No início do ano fui bombardeada com pedidos pra comentar um estudo polêmico da Fundação Getúlio Vargas (FGV), mas decidi ficar em silêncio até surgirem novos dados que ofereçam um contraponto. Esse dia chegou.
Em parceria com a Wharton School, dos Estados Unidos, os pesquisadores da FGV se propuseram a investigar se a origem dos prefeitos faz diferença em relação ao desmatamento em seus municípios. Pra isso, escolheram a região da Amazônia Legal, que compreende: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Tocantins e parte do Maranhão.
Os resultados tomaram os grandes jornais e as redes dos agroinfluencers. Eles concluíram que cidades cujos prefeitos são donos de terra não sofreram mais desmatamento que outras. Pelo contrário, seguiram a tendência nacional de redução.
Mas apesar de publicados neste ano, os dados da pesquisa foram colhidos durante os mandatos de 2004, 2008 e 2012. Em outras palavras, não abrangeram o período de maior desmonte ambiental desde a ditatura militar: o governo Bolsonaro, em que o próprio ministro do Meio Ambiente incentivava a passada da boiada como política pública.
Além disso, o estudo desconsidera outra nuance importante: mesmo se não forem produtores rurais, os prefeitos ainda podem receber todo tipo de influência do setor agropecuário, como terem suas campanhas financiadas por empresários da área. Em linhas gerais, não tô dizendo que o estudo da FGV não tem relevância. A chave pra conter o desmatamento pode ser a fiscalização, como analisam os pesquisadores, mas a crise das queimadas que vivemos neste momento aponta em outra direção.
A equipe de repórteres do De olho nos Ruralistas publicou há pouco um dossiê sobre os 100 maiores municípios em extensão do país. A escolha se deu porque coincide com áreas de forte atividade agropecuária. Chamado de Os Gigantes, o dossiê chegou a conclusões opostas às da FGV.
Não faltam coincidências entre as 100 prefeituras analisadas: a maioria de seus prefeitos e vices (55 deles) possuem imóveis rurais ou empresas ligadas ao agro. Em 34 cidades, de sete estados diferentes, os prefeitos são milionários, especialmente no Mato Grosso. Os dados também destacam que os municípios governados por ruralistas milionários tiveram desmatamento acima da média. Entre as quinze cidades que mais desmataram de janeiro de 2021 a julho de 2024, sete são geridas por milionários do agro.
Sem querer amenizar o potencial de letalidade de uma possível vitória do coach boçal em São Paulo, não dá pra esquecer o peso das disputas eleitorais das cidades da Amazônia. A tendência é que todos respiremos mais fuligem no ano que vem se esses municípios elegerem as mesmas agrofiguras de sempre.
Nesse clima super otimista, fechamos por hoje. Nunca escondi meu pouco apreço pelo fatalismo, mas também não tem nenhuma Pollyanna aqui. São tempos muito, mas muito desafiadores. Nos encontramos nos comentários aqui embaixo?
Obrigada pelo apoio de sempre e por seguir firme comigo em todos os sábados. A dureza das notícias pesa menos quando compartilhada.
Um beijo e até semana que vem,
Juliana.
admiro muito o seu trabalho, ju! obrigada por reunir e tratar com o seu sarcasmo e humor unicos informacoes tao importantes. um beijo pro ruivinho 🫶🏻
confesso que queria ser 1% Pollyana pra ser um tantin mais fácil seguir hehe