Olá, venener! Como você está? Bom sábado pra nós. Quero começar agradecendo as palavras belíssimas que recebi na última edição sobre o tópico dos princípios. A ideia não era focar em mim, mas acabou ficando difícil de evitar. E se eu sobrevivo sem fazer publis e sem assaltar bancos não sendo herdeira, é porque tem uma comunidade muito alinhada aqui, muito forte e que chega junto pra financiar meu trabalho. Aliás, nunca vou esquecer que pelo menos metade dos apoiadores manteve a assinatura mensal quando fiquei sem trabalhar naquela saga de longas internações do meu filho. Mas é muito doido, né? O Comida perdeu uns 20 mil seguidores naquela época e nunca mais consegui recuperar.
Enfim, nos últimos dias o nosso grupinho do Telegram só pra apoiadores debateu bastante a incoerência do biólogo Átila Iamarino ao fazer publi pra petroleira Shell. A gente ama uma fofoca no geral e o tema das publis questionáveis é recorrente por lá hahahaha. O pessoal mandou no grupo uma entrevista com o professor Alexandre Costa, da Federal do Ceará, e eu endosso aqui a relevância da leitura. Pro Nexo Jornal, o cientista faz uma análise bastante provocadora e corajosa do negacionismo “soft”, onde ele encaixa a publicidade feita pelo Átila e por outros profissionais.
O professor chama atenção pra essa virada de jogo: as grandes corporações, como a Shell, JBS, Unilever, Cargill, etc, não negam as mudanças climáticas, mas se esforçam pra oferecer contrapartidas risíveis, como a aposta no mercado de créditos de carbono. Esse tipo de estratégia configura o tal “negacionismo soft”. Também temos um episódio do finado podcast do Jornal do Veneno com um bloco só sobre as tretas que envolvem essa tal compensação de carbono. Vale a pena ouvir de novo.
Boa leitura :)
Observação: Ah! Se você responder esse e-mail, como muita gente tem feito, só eu terei acesso ao comentário. Pra ficar público e gerar um debate, tem que clicar na caixinha de “deixe um comentário” lá no final da edição, tá? E tem que tá inscrito na newsletter pra conseguir publicar.
🌎 GIRO DE NOTÍCIAS
Catorze anos depois, sai a primeira condenação pelo assassinato do nosso maior ativista contra agrotóxicos
Enquanto as outras regiões do país se destacam pela exportação de soja, milho e carnes, os estados do Nordeste sobressaem pelas frutas. Da Bahia saíram 266 mil toneladas de manga rumo à Europa e aos Estados Unidos no ano passado. De Pernambuco, 73 mil de uvas. Do Rio Grande do Norte, 228 mil toneladas de melões. No Ceará fica o município que mais exporta bananas pros conterrâneos do Paul McCartney.
A 200 quilômetros de Fortaleza, Limoeiro do Norte também é conhecida pela grande quantidade de bicicletas, pela passagem de Lampião, pela palha de carnaúba, por uma das maiores festas de carnaval do sertão, a Limofolia, além de conflitos no campo e intoxicações por agrotóxicos.
Os militares construíram uma infraestrutura pública de irrigação pra transformar o Nordeste num polo de exportação de frutas, prática também apoiada pelo governo do Ceará com incentivos fiscais, especialmente nos anos 90. Desde então, a vegetação típica da Caatinga abriu espaço pras monoculturas frutíferas mais apreciadas pelo mercado internacional. Saem os mandacarus, entram os mamoeiros. Camponeses foram ilhados pelas imensas plantações, obrigados a fornecer mão de obra barata pros empresários, e a ingerir veneno no ar, na água, nos alimentos plantados em suas próprias roças.
Quando tinha 9 anos, Márcia Xavier pegou uma infecção de pele grave que só se curou com banhos de água mineral. Foi aí que seu pai, o agricultor José Maria Filho, também chamado de Zé Maria do Tomé, começou a ligar o caso com o adoecimento de outros vizinhos.
Revoltado com as constatações, o pai da menina partiu pras denúncias. Zé Maria embrenhou-se em filmar os aviões das empresas despejando agrotóxicos que também caíam sobre casas, escolas e igrejas. Procurou órgãos públicos, rádios, jornais, universidades, organizou debates, mobilizou sindicatos e movimentos sociais. Também reuniu indícios de que as empresas estavam se apropriando de terras públicas pra expandir as lavouras.
A briga engajou, cresceu e culminou na aprovação de uma lei que proibia o aviãozinho de veneno em Limoeiro do Norte. Era 20 de novembro de 2009. Menos de um ano depois, em abril 2010, o pai de Márcia foi assassinado com 25 tiros perto de casa. Ele já tinha feito um boletim de ocorrência devido a ameaças que recebia por telefone.
Neste mês de outubro, passados catorze anos, a Justiça do Ceará condenou um suspeito, o que não é comum nos crimes contra ativistas nesse país. Francisco Marcos Lima Barros já começou a cumprir a sentença de 16 anos de encarceramento e era vizinho da vítima. Segundo a justiça, ele forneceu as informações pro planejamento e execução do crime. Outros dois suspeitos foram assassinados durante as investigações.
O Ministério Público do Ceará denunciou o empresário João Teixeira Júnior como mandante do crime, mas a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do estado concluiu que não há provas suficientes pra levá-lo a julgamento.
A Frutacor, empresa de João Teixeira, continua se destacando como uma das maiores produtoras e exportadoras de banana e mamão do Nordeste. Tem seis unidades no Ceará e ocupa 1.500 hectares de terra, área que aumentou dez vezes nos últimos vinte anos.
Enquanto isso, 30% dos trabalhadores do campo de Limoeiro do Norte já sofreram intoxicação por exposição a agrotóxicos. Um estudo da Universidade Federal do Ceará (UFC) mostrou que este e outros dois município próximos (Quixeré e Russas) registram 38% mais casos de câncer do que seus vizinhos que não possuem monoculturas de frutas.
O fim trágico do nosso Chico Mendes do Sertão acabou alastrando a causa no seu estado natal. A partir da execução por razões muita óbvias, a terra de Belchior se tornou pioneira na luta contra os venenos. Em 2018, aprovou a primeira lei estadual do país que proíbe a pulverização de agrotóxicos, de autoria do deputado Renato Roseno (PSOL/CE), conhecida como Lei Zé Maria do Tomé. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) segue tentando reverter a proibição, mas até o momento o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a validade do documento.
Um levantamento inédito do projeto Brasil Sem Veneno também apontou que existem 12 iniciativas contra o uso de agrotóxicos no estado, como a Semana Zé Maria do Tomé, evento anual que reúne organizações, acadêmicos, sindicalistas e aliados na luta contra o agronegócio.
Em 2014, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ocupou um terreno nas redondezas e criou o acampamento cujo nome também homenageia o ativista. Em vez de banana com veneno pra encher os bolsos de um único dono, cerca de 100 famílias produzem batata, macaxeira, pimentão, cebola, manga, goiaba, acerola, caju, coco e outros alimentos agroecológicos. Os produtos abastecem as feiras da região e da capital. Em 2021, em plena pandemia, o movimento também organizou a primeira feira da reforma agrária em Limoeiro do Norte.
Por outro lado, o enorme legado deixado pelo ativista cearense não é suficiente pra frear o avanço do agronegócio nessa região, que compreende a Chapada do Apodi. As monoculturas de frutas ganharam um novo parceiro devastador de saúde e biodiversidade: o algodão transgênico destinado ao setor têxtil, fora a expansão das pastagens pra produção de leite, que andava estagnada.
📝 Pra aprofundar: episódio do podcast Prato Cheio sobre os impactos da produção de frutas na qualidade de vida das comunidades locais.
🛒ME ENGANA QUE EU COMO CORANTE
Se o quilo do pistache tá na casa dos R$200, é de se estranhar que tenha um iguaria esverdeada em cada esquina
O pistache reúne atrativos acima da média das modinhas alimentares. Ao contrário da onda dos doces com leite ninho e nutella, por exemplo, ele enfeitiça públicos bastante variados. Enquanto o jovem tiktoker participa do desafio do Burguer King, que lançou um sorvete com calda de pistache, sua tia está pensando em quantas vezes pode parcelar a compra dos panetones com recheio da iguaria pra esse natal. No mesmo momento em que um chef faria limer está servindo sashimis de atum com crosta da semente, uma empreendedora periférica coloca seus sacolés verdinhos no isopor pra vender na estação de ônibus.
Originário do Oriente Médio, o pistache não possui nenhuma característica nutricional superior às suas primas castanhas, mas combina muito mais com a atual conjuntura de apocalipse climático, tendo em vista que exige menos água pra desenvolver. Também por isso, países como a Espanha estão trocando as monoculturas de uva pelo alimento instagramável de enorme valor agregado.
O rebuliço em torno do ouro verde pode ser explicado ainda pelas redes sociais, capazes de potencializar as tendências de todos os gêneros do dia pra noite, sobretudo em relação a hábitos alimentares e produtos comestíveis. Sem falar que tudo o que é mais difícil, mais caro e complicado de comprar gera mais cobiça, curiosidade, burburinho. E o pistache sempre custou milhões por ser plantado em poucas partes do mundo por nações envolvidas em muitas tretas geopolíticas.
O Irã foi o líder em produção até a maior democracia do mundo impor a primeira sanção comercial ao país, em 1979. Entre as idas e vindas das sanções, Barack Obama canetou uma lei nos anos 2000 pra proibir oficialmente a importação do produto. Com isso, os fazendeiros do estado da Califórnia ganharam incentivos do governo, investiram pesado na próspera novidade e assumiram a liderança do mercado mundial de pistache.
Pouco depois, surgia a American Pistachio Growers (APG), uma associação que representa mais de 800 produtores de pistache dos Estados Unidos. Juntos, eles financiam pesquisas pra disseminar os benefícios do consumo do fruto, lançam campanhas com famosos, participam de feiras em todos os continentes. Não tem jeito. Nenhum outro lugar do mundo é tão competente quando o assunto é fazer lobby (veja o filme Senhor das Armas, que já indiquei aqui!!!).
Em 2015, quando a proibição da compra de pistache iraniano deixou de valer, os conterrâneos da Madonna resolveram impor uma tarifa extra ao produto. Ao contrário de outras mercadorias importadas do mesmo país, o pistache agora paga três vezes mais imposto pra não ameaçar a safra interna e baixar os preços.
Assim como importou a paixão por hambúrguer, palhaçadas detox, aberrações proteicas, por imbecis de extrema direita e privatizações, o Brasil acompanhou a fissura estadunidense por pistache. No ano passado, importamos 608 toneladas do produto, o dobro do ano anterior, o que nos custou R$48 milhões.
Apesar de termos a castanha da Amazônia, de pequi, buriti, caju, e uns parentes próximos que rendem ótimos petiscos, como o licuri e o amendoim, também sonhamos agora em produzir o pitéu asiático. Há dois anos, a Federação da Agricultura e Pecuária do Ceará (Faec) pediu autorização à Embrapa pra um plantio experimental de pistache nas regiões de serra do estado nordestino. Os testes devem levar de seis a dez anos.
Se fosse apenas uma onda cafona e gourmetizada ao estilo das paletas mexicanas, tava tudo bem até. Mas somos o país em que o sorvete de chocolate não tem cacau, tem corante caramelo pra deixar escurinho, mesmo a gente produzindo muito cacau por aqui. Imagine, então, se vamos encontrar pistache nessa ruma de produto da moda.
Pesquisando rapidamente na internet, descobri a existência das pastas saborizantes à base de pistache pra uso culinário. Vendem na Shopee, no Mercado Livre, em atacadões, em lojas especializadas em produtos de confeitaria, em armazéns gourmet.
A maioral do setor é a italiana Fabrri, que despejou 10 novos produtos à base de pistache no mercado brasileiro nos últimos dois anos. A maior parte deles engloba um mix de oleaginosas, como amêndoas e castanha de caju, às vezes gordura de palma, e muitas vezes uma série de corantes pra garantir o predomínio da cor verde. A linha da pasta de pistache puro da empresa sai a R$699 a lata de 1kg. Ela contém os corantes curcumina e azul brilhante FCF, este último proibido na União Europeia que, olha só, é onde fica a sede da empresa.
É claro que não conseguimos confirmar a procedência ou pelo menos garantir a presença de pistache em todos os produtos vendidos em restaurantes, aplicativos de comida, pequenos comércios de rua e supermercados, mas os preços minimamente pagáveis alimentam suspeitas.
E se você pesquisar os ingredientes dessas pastas saborizantes, vai descobrir que aquele cookie verdinho pode estar mais pra salsicha do que pra elixir antioxidante. Vamos espiar uns exemplos.
No fundo, a gente nem precisaria perder tempo pesquisando. O pistache por si só não é tão esverdeado assim. Se você ganhar na loteria e fizer sua própria pasta em casa, do mesmo jeito que é feita a simplinha pasta de amendoim, vai notar uma característica interessante: o resultado será apenas leeeeeeevemente esverdeado, puxando mais pro bege e pro marrom claro comum às nozes. Não é de surpreender ninguém que estamos, mais uma vez, pela enésima vez, comendo mais aditivo químico do que comida.
É isso? Como citei o Ceará nos três blocos dessa edição, já posso pedir música hahaha. Vou fechar com uma das minhas preferidas do Belchior e com uma súplica: Fortaleza, vamos eleger o Evandro nesse domingoooooooooo!
Ó, na quinta que vem tem Colheradas só pra apoiadores, viu? Se você não puder apoiar esta bagaça pra receber a news exclusiva, nos encontramos de novo no próximo sábado, já entrando no mês de novembro.
Obrigada pela atenção, pela companhia e não esquece de comentar aqui embaixo.
Um beijo,
Juliana.
Já dizia a maravilhosa Graúna: o problema do Nordeste não é seca, é cerca.
O podcast rádio escafandro fez um ótimo episódio sobre créditos de carbono. Recomendo demais.
Eu sou apaixonada por pistache desde pequena. Aí uma vez fui na sorveteria da Ribeira, famosa aqui em Salvador, lá pelos idos dos anos 90, e pedi um sorvete de pistache. Depois pedi outro, de menta. Era o mesmo sorvete verde para os dois sabores. Virou folclore familiar.