Cadê o cacau que tava aqui? #110
Ovos de páscoa seguem tendência de biscoitos e barras de chocolate: menos cacau, mais gordura e preços em alta
Olá, venener. Bom sábado pra você. Como tá vontade de comer chocolate por aí? Olha, eu amo, mas também sou fissurada naqueles amendoins caramelizados. Quando era criança, as tias recheavam ovos de verdade pintados à mão com essa iguaria. Era uma gincana comer sem quebrar. Que saudade!
Pra variar, essa edição contou com uma mudança de percurso. Planejei inicialmente um raio-x dos ovos gourmet de grandes marcas, que não são tão diferentes, muitas vezes, daquele guarda-chuvinha de gordura hidrogenada que nunca mais sai do céu da boca. Lembra daquilo? Tem até hoje no formato de bola de futebol também hahaha.
Mas no meio da pesquisa fiquei sabendo do surto coletivo em torno da nova versão da bolacha passatempo. Fui juntando os fios e acabou saindo o que você vai ler agora.
Boa leitura :)
🛒ME ENGANA QUE EU COMO
Preço do cacau quase triplica e grande indústria aposta na velha saída de reduzir o tamanho das embalagens e, no geral, piorar qualidade dos produtos
Em sorveterias, padarias e supermercados brasileiros, é possível encontrar dezenas de delícias com “chocolate belga” na composição. Estranho é que nunca se teve notícia de um único cacaueiro plantado para fins comerciais em todo o território da Bélgica, assim como na Suíça, também famosa pelo doce. A espécie Theobroma cacao L é nativa da Amazônia e muito sensível a baixas temperaturas.
A reputação do chocolate europeu foi criada em cima de matéria-prima importada da América do Sul e África, mais especificamente da Costa do Marfim, Gana, Nigéria, Equador, Camarões e Brasil. A diferença é que, o contrário das leis em vigor nos países produtores, a Europa costuma ostentar regras mais rígidas pra segurar a qualidade da sua guloseima.
Quando a gente ainda nem tinha abolido a escravidão, a terra do ator Jean-Claude Van Damme já se orgulhava de uma legislação rigorosa: mínimo de 35% cacau, nenhum aditivo químico (como aromatizante), nada de substâncias super industriais (como xarope de glicose) e gordura apenas da própria manteiga de cacau.
Fora de casa, no entanto, as empresas europeias de chocolate nem sempre seguem o mesmo padrão de qualidade. A marca belga Callebaut, por exemplo, adicionou aroma de baunilha e lecitina de soja no seu chocolate ao leite da linha 823 vendido no Brasil. O produto destinado à confeitaria também leva mais açúcar do que cacau ou leite integral.
A suíça Lindt, uma das marcas importadas mais estimadas por aqui, também baixou a qualidade em solo brasileiro. O ovo lindor ao leite, de 235 gramas, custa em torno de R$104,90 e não apresenta uma fórmula muito diferente das grandes empresas nacionais. Sua composição inclui aromatizante e mais açúcar e gorduras vegetais (de coco e palma) do que manteiga de cacau.
A terra que pariu o tenista Federer também deu origem a um dos maiores conglomerados de alimentos do mundo, a dona Nestlé, líder no setor de biscoitos e chocolates em 191 países. A gigante, que comprou as brasileiras Kopenhagen, Cacau Brasil e Kop Koffee no ano passado, ainda lança opções exclusivas por país, como o chocolate Prestígio aqui. Sua lista de ingredientes é realmente a cara do Brasil: rica em açúcares adicionados, com cacau apenas como quarto ingrediente mais aquela turma comum aos pacotes ultraprocessados.
Até a década de 1980, os chocolates à venda por aqui não passavam tanta vergonha. Nossa legislação exigia ao menos 32% de cacau pra que o produto recebesse a alcunha de chocolate. Como mostrou a novela Renascer, da Rede Globo, foi a vassoura-de-bruxa, doença causada por um fungo, quem dizimou os cacaueiros da Bahia nessa época. O preço do produto disparou e as empresas foram pressionando o governo pra baixar a exigência pra 25%, padrão que se mantém até o momento. Os produtos que não batem essa meta mixuruca precisam descrever o produto como “sabor chocolate”.
Foi o que aconteceu há pouco com o choco biscuit da Bauducco, que perdeu o “chocolate” estampado na embalagem, mas manteve o preço. Dois clássicos também passaram por essa repaginada pra pior. Tanto o Serenata de Amor, da Garoto, quanto o Sonho de Valsa, da Lacta, agora só apresentam cobertura “sabor chocolate”.
Não dá pra dizer que os alimentos saborizados artificialmente ou que levam apenas um tiquinho do ingrediente base são uma novidade nas prateleiras da América Latina. Trata-se de uma estratégia mesopotâmica da indústria alimentícia pra baratear os custos de produção e aumentar ou manter o faturamento. Se a legislação permite, prática comum onde grandes empresas andam de mãos dadas com bancadas do congresso, é claro que as corporações vão preferir o aromatizante à fruta ou outra miscelânea de ingredientes maquiadores.
Esses artifícios nunca estiveram tão presentes no setor de chocolates como agora. Mas era só uma questão de tempo, a famosa tragédia anunciada. Assim como o café, o cacau detesta os fenômenos climáticos extremos, como enchentes, longos períodos de estiagem e ondas de calor mais intensas a cada ano. Só que as mudanças climáticas não dão conta de explicar todas as nuances dessa crise.
Desde o surto de vassoura-de-bruxa, as grandes plantações de cacau continuam em expansão nos mesmíssimos países, de forma concentrada, e seguindo o modelo agropecuário moderno: de desmatamento e monocultura. Só a Costa do Marfim, maior exportador do planeta, derrubou 64% de floresta entre 1990 e 2015 pra ampliar as áreas de cacau.
O professor Flávio Gandara, da Universidade de São Paulo, chama atenção pra outro ponto. Ele observa que os países africanos detêm 75% do mercado global de cacau, mas seus produtores são pequenos agricultores, recebem um valor baixíssimo pelas safras e não contam com recursos ou apoio pra diversificar suas técnicas, investir em pesquisa, tecnologia.
No cenário brasileiro também não há do que se gabar. A redução no volume de chuvas e o estresse térmico derrubaram a produção em todos os estados. A Bahia registrou queda de 21,8% no ano passado, o Pará, 11,9%, Espírito Santo, de 21%, e Rondônia, 30,7%. A boa notícia é que pelo menos há uma tendência de crescimento do cultivo agroflorestal nas nossas bandas e esse modelo resiste mais às intempéries climáticas.
Mesmo antes da crise, o Brasil passava longe da autossuficiência de cacau. Precisando importar, é inevitável que fiquemos vulneráveis às instabilidades internacionais. E como se trata de uma commodity, mercadoria comercializada globalmente, também não controlamos o preço aqui dentro. Então fica difícil ter pra onde fugir no curto prazo.
O drama atual é esse: 2025 é o quarto ano seguido em que o planeta acumula uma demanda maior do que a oferta de cacau e não há nenhuma perspectiva de alívio pro setor. Se a gente começar uma lavoura maravilhosa de cacau nesse instante, num modelo ecológico, em consórcio com diversas espécies, as árvores só devem atingir seu pico de produção em dez anos. Por tudo isso, só no ano passado a alta nos preços chegou a 189% na Bolsa de Nova York.
Os chocolates em barra e bombons, a maioria de qualidade duvidosa, passaram a custar 16,5% a mais nos últimos 12 meses, como informa o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo). E não precisamos acionar a Márcia Sensitiva pra vislumbrar o panorama dos próximos meses, né? Devemos assistir a uma grande reformulação no setor de doces e novas disparadas nos preços. Nesta Páscoa, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) projeta que os ovos custem 12% a mais que no ano passado.
Serão 13 milhões de ovos a menos nos supermercados brasileiros nesse ano, uma queda de 22% em relação a 2024. Mas a indústria está confiante de que não vai deixar a peteca cair e aposta em três possíveis saídas: reduzir o cacau de produtos conhecidos, lançar novos itens com o foco em outro ingrediente, como ovos com biscoito, e encolher as embalagens. Essa última precisa acompanhar um aviso na embalagem, exigência do Portaria 392/2021 do Ministério da Justiça. A norma diz que em caso de alteração na quantidade vendida em uma embalagem, isso deve ser informado no rótulo pelo prazo mínimo de seis meses.
Grandes empresas começaram a encolher seus chocolates muito antes do auge da crise do cacau. Em 2014, a barra de chocolate ao leite da Garoto (que pertence à Nestlé) tinha 150 gramas. Agora, tem 90. Já as de diamante negro e chocolate branco, ambas da Lacta, passaram de 200 gramas pra 165.
As barras da gaúcha Neugebauer já pesaram 180 gramas um dia. No momento, pesam a metade. A estadunidense Hershey's não ficou de fora da festa. Manteve embalagens de barra de 130 gramas até 2013. Depois foi baixando, baixando, até alcançar a marca atual, de 92 gramas.
Como se não bastasse, a queda da qualidade dos chocolates já é realidade e vai além da perda de massa de cacau na composição. A manteiga, a gordura extraída das amêndoas de cacau, também subiu de preço, ainda vem sendo bastante demandada pela indústria cosmética, e têm sido substituída por óleos e gorduras vegetais. Nos chocolates, é esta abençoada quem garante a sensação de derretimento na boca. Mas para reduzir os custos de produção, as marcas têm incluído ou aumentado a porcentagem de óleo de palma, um tipo de gordura vegetal, ou de óleo de palmiste, opção ainda pior pra um chocolate.
Nem o leite de vaca escapou e isso não se deve a uma possível preocupação com sustentabilidade ou direitos dos animais. Ele vem sendo trocado pelo permeado de soro de leite ou soro de leite em pó, ambos mais baratos.
Também é de praxe que crises se tornem oportunidades, outra expertise do capitalismo. Em vez de seguir a tendência das colegas de reduzir a qualidade dos produtos fazendo de conta que nada está acontecendo, a Nestlé dobrou a aposta. Criou todo um burburinho em cima da reformulação do biscoito recheado passatempo. A promessa é genial: retomar uma composição do passado e entregar um gostinho de infância aos consumidores.
O suposto retorno da fórmula antiga transformou-se num surto no Tik Tok. As pessoas correram pra comparar a fórmula repaginada com a anterior e lacrar sua opinião. Até onde acompanhei, a mudança tem sido aprovadíssima. Muita gente cravou que o biscoito voltou a desmanchar na boca, mas não tentou entender as razões. A Nestlé fez mais do mesmo: reduziu o percentual de cacau do recheio, aumentou a quantidade de gordura vegetal, acrescentou soro de leite e permeado de soro e mais uma dose cavalar de sal.
Aliás, eu nunca tinha visto um biscoito com uma dose tão alta de sal na história desse país. Ele vem na frente do leite na lista de ingredientes, ou seja, tá em maior quantidade. Pra você ter uma ideia, o biscoito bono recheado de chocolate, também da Nestlé, tem 112 miligramas de sódio a cada 100 gramas do produto. A nova passatempo tem 244 miligramas de sódio, mais que o dobro!
Por enquanto, as estratégias têm surtido efeito. O aumento no preço do cacau, da energia elétrica e das embalagens não impediram que o faturamento da indústria de alimentos crescesse. No ano passado, a turma ampliou a fatia em 9,9%, chegando a R$ 1,27 trilhão, o que representa 10,8% do PIB. Os frutos das vendas foram colhidos basicamente aqui dentro do mercado interno mesmo, o que somou 72% do faturamento total.
Os pequenos negócios não contaram com a mesma bonança. Apesar de usarem o cacau fino brasileiro e fugirem da volatidade internacional, a queda na produtividade nacional levou microempresários a ficarem sem insumos, a se endividarem, reduzirem as margens de lucro e aumentarem os preços finais.
Conversei com a Rubia Soter, gestora de marketing da Invento Chocolates. Localizada em Florianópolis, a empresa conta com dois funcionários, mais a mão de obra dos dois sócios e da esposa de um deles. Pra garantir a compra do cacau brasileiro, especialmente nesse momento de crise, a empresa mantém uma relação de cumplicidade com os agricultores e constante troca de conhecimentos. Os sócios Felipe e Guilherme inclusive se hospedam na casa dos produtores durante as visitas às plantações. Pra lidar com a disparada no preço do cacau do nicho “do grão à barra” (bean to bar) no ano passado, a Invento reduziu as margens de lucro e reajustou seus preços em 30%.
A bióloga Luiza Santiago, criadora do Kalapa Chocolate, de Belo Horizonte, costuma ir até seus fornecedores baianos em maio pra entender a dinâmica do campo e assegurar a compra dos grãos de cacau agroecológico pra Páscoa do ano seguinte. Mesmo com os laços consolidados, a empresária não esconde o desânimo pela falta de apoio e subsídios diante de um cenário tão desfavorável. No Kalapa, é essa época que garante o pagamento das contas do ano todo. Como a produção é em minúscula escala, as margens ficam muito apertadas e o futuro do negócio anda cada vez mais incerto.
🔍Pra acompanhar
Heróis. Eleutério, Constantino, Manoel, Mateus, Leopoldo, Maria, Sabino, Macário, Clemente, Antônio e Francisco foram os responsáveis pelo plantio de 185 mil árvores durante o Segundo Império e recuperaram a Mata Atlântica, devastada pela produção de café na Floresta do Tijuca (RJ). O feito reduziu em cinco graus a temperatura da região e apaziguou a crise de abastecimento de água na cidade. Engana-se quem pensa que foram pessoas escravizadas apenas seguindo ordens. Segundo o pesquisador Gabriel Sales, professor de biologia da PUC-Rio, o trabalho exigiu conhecimentos especializados e só poderia ser feito por quem demonstrasse familiaridade com o ecossistema. Agora, o nome de cada um está registrado no "Livro dos Heróis e Heroínas do Estado do Rio de Janeiro”, proposta da deputada estadual Dani Monteiro (PSOL) e aprovada pela Assembleia Legislativa.
Café sombreado. Entre 1931 e 1944, Getúlio Vargas mandou queimar 78 milhões de sacas de café pra segurar a queda de preços no país. O governo da época também ofereceu indenização pra quem parasse totalmente de plantar café. Foi o que aconteceu com produtores de Floripa (SC). A capital aqui das minhas bandas bombava na produção de café sombreado, a variedade comum à Colômbia, muito mais resistente às mudanças climáticas por aguentar melhor à estiagem. Por que não estamos discutindo o resgate da espécie nesse momento?
Namíbia. Pela primeira vez na história, o país africano elegeu uma mulher pra presidência. Em seu discurso de posse, Netumbo Nandi-Ndaitwah, de 72 anos, prometeu diversificar a economia pra reduzir a dependência da mineração e investir em agricultura. Seu desafio é imenso: apenas 2% do território tem chuva suficiente pro cultivo de vegetais.
Escolhas. No Abril Vermelho desse ano, o lema do MST será “ocupar para o Brasil alimentar” e promete mobilizações em todos os 26 estados. Dilma, Temer e Bolsonaro não mexeram um alfinete pela reforma agrária e Lula segue pressionado pelo movimento pra não seguir o mesmo caminho. De outro lado, a bancada ruralista se articula no congresso pra reverter oito portarias petistas caso Lula faça acenos ao MST.
É hora de dar tchau….
Olha, como a gente merece um recesso das musas fitness, nem entrei na alçada dos ovos de Páscoa proteicos e com adição de creatina, tá? hahahhaha
Obrigada pela companhia, pelo apoio de sempre e por seguir acreditando que a gente pode construir outro sistema alimentar, muito mais justo.
Um beijo e até sábado que vem,
Juliana.
Este ano vou comprar um ovo de Páscoa com recheio de chocolate de Dubai, enriquecido com fibras, zinco, polvilhado de whey de pistache
achei que tava arrasando nos chocolates que compro, fui ler a lista de ingredientes agora e bingo: gordura de palmiste, soro de leite, aromatizantes, até farinha de trigo 🤡