Olá, venener. Suspeito que você vai ter um fim de semana melhor que o dos acionistas da Coca, hein? hahaha Sim, parece mentira! Os refrigerantes se consolidaram de vez no grupo do cigarro e devem receber um imposto extra a partir de 2033. Aeeeeeeeeee!
Mas você vai me desculpar. Me esforcei pra mudar de assunto, dar um tempo de imposto, mas não deu! Se achar ruim, vá reclamar lá em Brasília hahahaha. Eu não disse na edição passada que os refrigerantes seriam mantidos no imposto seletivo, mas a questão das carnes tava quentíssima e sem definição? Pois é. A novidade veio e veio indigesta. Não tem como falar de suplementos pra gripe nesse momento (mas vem aí hahaha).
Aaaaah! Preciso agradecer as mensagens fofíssimas de aniversário. :) Uma mais linda que a outra. De deixar a canceriana aqui toda tola. Minha comunidade de apoiadores merece um abraço reforçado. Mantém esse jornal de pé, me alimenta de mimos durante as intempéries da vida e ainda manda um pacote especial com bolachinhas, pãezinhos de polvilho e esse cartão bem veganinho hahaha.
Boa leitura! :)
Desculpe, mas eu vou chorar
Texto da reforma tributária que segue pro Senado traz uma novidade: picanha, bisteca, tilápia e franguinho livres de impostos
No ano passado, um dos sertanejos mais aclamados do país entrou com uma ação na justiça contra o estado de Goiás. Com 22 milhões de discos vendidos, um cachê publicitário na média de R$250 mil e mais de 40 mil cabeças de gado, o cantor Leonardo não aguenta mais pagar tantos impostos.
O processo movido pelo sogro da Virgínia tem relação com uma prática muito comum entre pecuaristas brasileiros: a transferência de gado de um lugar pra outro. Como se fossem pneus ou pacotes de biscoito, os mamíferos são frequentemente movidos de uma fazenda pra outra por questões climáticas, pra serem destinados aos abatedouros e frigoríficos, exportados vivos a outros países ou por conta da famosa “lavagem de gado”.
A prática ilegal explodiu nos anos bolsonaristas, especialmente na região amazônica. Ela consiste na criação de animais em áreas proibidas, invadidas ou desmatadas. Mas como vai chegar a hora de vender essa carne pra indústria, os fazendeiros precisam levar os bichos pra uma terra legalizada antes. Isso mesmo. Negando as aparências, disfarçando as evidências.
A motivação do amigo do Zezé di Camargo, segundo ele mesmo, é deslocar os bois entre suas fazendas do Tocantins e de Goiás pra garantir a alimentação deles em períodos de seca. Mas o processo exige o recolhimento do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias, o ICMS, que o senhor Leonardo acha injusto pagar.
Por isso, imagino que o cantor de Tapas e beijos (essa envelheceu mal, hein) deva ter feito um churrasquinho pra festejar a aprovação da nova reforma tributária.
O grande projeto do governo Lula, encabeçado pelo ministro da voz mais sexy de Brasília, ainda precisa ter vários detalhes debatidos e sancionados pelo Senado nos próximos meses. Também deve rolar um período de transição, com as novidades valendo só em 2033 oficialmente.
Com as novas regras elaboradas pela equipe do Haddad, Leonardo não vai mais precisar pagar o seu sofrido ICMS nem gastar com advogados pra perturbar o governo de Goiás, já que esse imposto estadual deixará de existir. E não é só fazendeiro bilionário que sai lucrando nessa, viu? A gente também se beneficia porque os impostos relacionados ao consumo serão unificados.
Então, graças às deusas da transparência, a gente vai passar a saber onde que tá o imposto em cada produto. E não vai pagar várias vezes. Tudo o que a gente compra, a exemplo do boi que o Leonardo vendeu e virou picanha ao batom de péssima qualidade da nora dele, só vai ser taxado uma única vez do início da produção à compra do consumidor final.
Mas na última quarta, dia 10, a turma do Chitãozinho foi surpreendida com mais uma boa nova na reforma tributária. Após gritaria da Frente Parlamentar Agropecuária, que reúne 324 dos 513 deputados, nota de apoio do partido do inelegível e pedido do atual presidente, nossos abençoados parlamentares decidiram mudar o texto proposto pelo comitê que analisava o tema.
E nos 45 minutos do segundo tempo, tiraram as carnes do grupo que vai receber desconto de 60% de imposto, como a pobre da tapioca, e meterem a isenção total.
Em linhas gerais, governistas, oposição e outros colegas colocaram todo o menu da churrascaria Fogo de Chão, cujo rodízio sai a R$ 215 por pessoa, entre os itens da cesta básica. As exceções são: foies gras, salmão, atum, bacalhau, ovas, hadoque, saithe e crustáceos.
Ééééé, gata. Pra gente nunca esquecer que a escolha entre o esposo da Janja e o esposo da Michelle nunca foi difícil, por favor, mas eles não batem de frente em todos os tópicos, não. Quando o assunto é o feudo conservador e produtor de commodities agrícolas, eles podem até assar um linguiça na mesma churrasqueira.
Foram 477 deputados a favor de zerar o imposto pras carnes. Apenas Aluisio Mendes (Republicanos-MA), Danilo Forte (União-CE) e Padovani (União-PR) votaram contra. Enquanto Duda Salabert (PDT-MG) e Hildo Rocha (MDB-MA) se abstiveram.
Além das florestas, dos povos tradicionais, dos bichos e do planeta como um todo, quem não gostou do resultado foi a equipe do ministro Haddad. O professor conseguiu, inclusive, convencer o estorvo do Arthur Lira, presidente da Câmara, de que isentar todas as carnes é um péssimo negócio pra economia. Mas ambos saíram derrotados.
Tem que aprender a dizer adeus
Os deputados foram quase unânimes por conta do apelo popular, eleições municipais chegando, nãnãnã, mas não dá pra garantir que as pessoas de menor poder aquisitivo vão conseguir colocar patinho no estrogonofe.
Com a nova reforma, tirando os produtos que receberão impostos extras e aqueles que serão isentos, todo o resto da galera pagará no máximo 26,5% de imposto. Mas se o Senado também achar interessante deixar as carnes zeradas, os outros objetos poderão pagar mais pra compensar. Segundo o tio Haddad, seria necessário aumentar a alíquota pra 27% pra todo mundo.
A gente não tá falando de prego e esparadrapo, né? As carnes compõem um leque gigante de alimentos, que grande parte da população consome todos os dias, às vezes várias vezes ao dia, especialmente ovo e frango.
Sem falar nos produtos que pouca gente esbanja com frequência, mas que têm um grande valor agregado, como filé mignon e alcatra. Deixar de recolher imposto nesses casos é menos grana arrecadada pra investir em serviços públicos. Resumindo: de algum outro lugar a bufunfa perdida vai ter que sair.
Falar de alíquota zero pras carnes significa nenhum centavo arrecadado sob a venda dos bois nas fazendas do Leonardo, nem no frigorífico do Gustavvo Lima, tampouco nas prateleiras do Carrefour.
Pior: quem garante que toda essa cadeia tóxica não vai ter a estupenda ideia de aumentar sua margem de lucro? Eles podem deixar de passar os preços reduzidos pra população.
Tem isso ainda, né? A questão das taxações ou isenções não se reflete exatamente em aumento ou redução do preço pro consumidor. Existem diversas outras cadeiras que interferem nessa dança também.
A própria reforma já chegou no congresso com uma estratégia pensada pra reduzir a desigualdade tributária e aliviar pra quem tem menos grana, o esquema do cashback. No texto aprovado na última quarta, famílias que ganham até meio salário mínimo por pessoa poderão receber de volta 100% do valor pago em impostos nas contas de energia, água e na compra de botijão de gás.
Para os demais produtos, a devolução seria de 20% do valor. É aqui que as carnes deveriam entrar! As classes menos abastadas pagariam o valor padrão, mas teriam direito a uma parte da grana de volta. Assim, a gente diminuiria as chances das pessoas se sentirem proibidas de acessar alimentos que consideram essenciais, mas de um jeito que o Luciano Huck não sai ainda mais privilegiado, entende?
Era só o que faltava. A pecuária lidera os casos de trabalho análogo à escravidão no Brasil; ostenta a alcunha de segunda atividade que mais contribui pro aquecimento da terra; o pantanal vive queimadas históricas comprovadamente causadas de forma proposital pra abrir pasto. E o que fazemos nesse contexto? Opa, bora incentivar os ricaços a se lambuzar de entrecôte ao molho gorgonzola. Partiu abrir a porteira (que já tava escancarada) pra galera invadir umas áreas de preservação aí e enfiar uns bois.
De um lado da balança há o custo climático da criação de animais, os problemas socioambientais relacionados (e eles são intermináveis), a correlação com as doenças infecciosas, como a covid-19, gripe suína, gripe aviária, a ética animal (alguém lembra?). De outro, o fator cultural pesa bastante também. E a cultura diz respeito a quem a gente é.
No Brasil, o povo assa coração de galinha no aniversário, peru no natal, anseia pela carne de panela da vó, agradece pelo peixe frito com farinha, pede canja quando tá doente do corpo ou da alma. Fora que as carnes representam prosperidade, fartura, bem aventurança, poder aquisitivo. Eu sou vegana, mas não vivo em Saturno.
No entanto, nossas crenças, hábitos e tradições também não são fixadas no tempo e espaço, né? Tem muita coisa indefensável que a gente já normalizou no passado. Vou te poupar desses gatilhos.
O Guia Alimentar para a População Brasileira trata bastante da relação entre saúde e cultura. O próprio documento atesta que a combinação de arroz e feijão, tão enraizada por aqui, já é suficiente pra formar os aminoácidos que a gente precisa. Isso quer dizer que ninguém nesse país precisa colocar um bife no prato em todas as refeições, todos os dias.
Pelo contrário. O nosso patrono da nutrição recomenda que todos reduzamos o consumo de ingredientes de origem animal pra ter mais saúde, fortalecer os pequenos negócios e possibilitar algum futuro pros nossos filhos:
A opção por vários tipos de alimentos de origem vegetal e pelo limitado consumo de alimentos de origem animal implica indiretamente a opção por um sistema alimentar socialmente mais justo e menos estressante para o ambiente físico, para os animais e para a biodiversidade em geral. O consumo de arroz, feijão, milho, mandioca, batata e vários tipos de legumes, verduras e frutas tem como consequência natural o estímulo da agricultura familiar e da economia local, favorecendo assim formas solidárias de viver e produzir e contribuindo para promover a biodiversidade e para reduzir o impacto ambiental da produção e distribuição dos alimentos.
(Página 31 do Guia Alimentar para a População Brasileira)
O Guia ainda cita inúmeras consequências negativas dos sistema intensivo de produção animal: a aglomeração que estressa os bichos, estimula o surgimento de doenças e o uso massivo de antibióticos; os dejetos que poluem o solo, podem contaminar rios, açudes, lagos e afins.
Além de não poderem circular, ver a luz do sol, escolher se reproduzir, conviver com as crias, os animais destinados à alimentação humana precisam comer ração fabricada com ingredientes plantados em monoculturas transgênicas e envenenadas de soja e milho. Por isso que a pecuária é um problema duplo: os impactos e maus-tratos com os bichos se somam à devastação causada pela produção da ração que eles comem.
Infelizmente, o programa de análise de resíduos de agrotóxicos da Anvisa não testa alimentos de origem animal. Então a gente sabe que o tomate recebe doses cavalares de venenos proibidos na Europa, mas não faz ideia da situação da manteiga ou do peito de frango. O que temos de estudo nesse sentido foi feito pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec, que encontrou veneninhos em 58% dos ultraprocessados de origem animal pesquisados, como nuggets e requeijão.
Só o aspecto da saúde já renderia artigos, livros e dossiês inteiros. Tem os antibióticos que permanecem nas carnes, os aditivos cosméticos dos frutos do mar de cativeiro, as doenças cardiovasculares relacionadas ao consumo de gordura saturada.
Mas como não dá pra abranger tudo, quero voltar pras pessoas menos abastadas, aquelas que não jantam na Fogo de Chão, tendo em vista que nossos deputados usam esse grupo como desculpa pra isentar as carnes.
Mulheres pretas periféricas, que lideram os índices de diabetes tipo 2 no país, enfrentam grandes obstáculos pra acessar vegetais frescos. Um estudo da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, que acaba de ser publicado, mostrou que mesmo dentro das periferias há discrepâncias entre raças nesse quesito.
As mulheres negras consomem menos frutas e verduras, praticam menos atividade física e se sentem mais estressadas que suas vizinhas brancas. Portanto, elas devem ter a chance de comer o que quiserem, incluindo os produtos do açougue, mas o estado precisa se mexer com urgência pra facilitar o acesso à manga, melancia, caqui, rúcula, castanhas, brócolis, espinafre. Essa é GRANDE lacuna!
São os alimentos ricos em vitaminas, fibras e antioxidantes, que previnem doenças, que sustentam a agricultura familiar, cuja produção não ameaça os territórios indígenas e quilombolas, que devem ser incentivados pelas políticas públicas. Aliás, só a isenção de impostos pros vegetais na reforma tributária ainda é muito pouco num rincão desigual, patriarcal e racista, né?
Meu sonho é viver num país onde todo mundo tenha poder de escolha pra chegar o momento de taxar as carnes, desestimular o consumo em todas as frentes possíveis, passando inclusive pelos cursos de gastronomia. Imagina as aulas dedicadas às marinadas pra beterraba, aos bolinhos de taioba, à defumação de cogumelos, ao doce de leite à base de coco, hein?
Mas enquanto o Brasil se destacar nos índices de desigualdade, enquanto houver gente esperando por ossos numa fila interminável, não dá. Seria mais elitista e perverso do que já é.
Agora, colocar o contrafilé do lado do feijão na lista da cesta básica soa quase como um deboche nesse momento do país. Passou um pouco do ponto. Tá na hora, inclusive, do presidente escolher se vai continuar falando em picanha e em petróleo na foz do rio Amazonas ou em sustentabilidade. Peraí. Ele já escolheu, né.
Como ressaltei na edição passada sobre os refrigerantes, as regras sobre os impostos carregam um lado subjetivo, passam recado, refletem uma conjuntura.
E o ano é 2024, os nossos biomas tão chegando num ponto de não retorno, o Rio Grande do Sul não acabou de limpar a lama das ruas e a próxima pandemia provocada pela combinação de desmatamento + produção industrial de animais pode tá no forno.
📝 Pra aprofundar: matéria do Repórter Brasil sobre como a indústria da carne trabalha pra minimizar sua responsabilidade nas mudanças climáticas.
💡Pra pensar fora da caixa: entrevista com Angela Davis sobre direitos dos animais e produção de alimentos.
🪴Pra se inspirar: documentário Antes do prato, disponível no Globoplay ou pra comprar no Youtube, sobre iniciativas que se opõem ao nosso atual modelo de produzir comida.
Era pra entrar um quadro engraçadinho agora, mas não ornou hahaha. Quero encerrar nesse clima mais emblemático mesmo.
Então é isso, venener do meu coração. Tenho muito mais pra escrever sobre as carnes, mas logo esse assunto vai voltar. Pelo andar da carruagem, o debate vai esquentar muito em Brasília ainda e logo tá de volta com outras nuances por aqui, viu?
Obrigada pela atenção, pela companhia, pelo apoio e por não desistir desse jornal nos momentos mais espinhosos.
Um beijo e te espero sábado que vem,
Juliana.
Edição maravilhosa!
Se os cursos de gastronomia no Brasil tivessem uma disciplina do Jornal do Veneno já seria uma grande mobilização de senso crítico entre os universitários e classe trabalhadora das cozinhas. O "desculpe mas eu vou chorar" foi ótimo, literalmente ri e chorei rsrs a melhor escrita jornalística com inteligência e senso de humor. xero Ju e até próximo sábado 😘