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No oitavo episódio da primeira temporada de Gilmore Girls, a protagonista Lorelai abre a janela de casa no meio da friaca da madrugada e jura sentir um cheiro de neve chegando.
Confirmada a previsão pela manhã, o caos se instala. Sua filha (que até o momento a gente ama, mas vai ficando insuportável à medida que cresce) quase não consegue chegar na casa dos avós pra jantar por conta do gelo na estrada. Nenhum empregado do recinto consegue bater o ponto e os aristocratas precisam se virar. Emily, a avó, não sabe ligar o forno. O avô, Richard, não sabe onde ficam os talheres. Cabe a nossa menina prodígio, Rory, encontrar uma pizza congelada de uma funcionária e expandir as pupilas do trio com glutamato monossódico.
A nevasca ainda levou um professor da filha, por quem Lorerai se engraça, a ficar preso entre uma cidade e outra, e uma amiga de Rory sofrer com uma desilusão amorosa sem poder desabafar, já que as linhas de telefone param de funcionar.
Os véio conservador da cidade resolvem manter a tradição de fazer uma vigília armada em homenagem aos antepassados que esperaram pela guerra contra os ingleses (que nunca aconteceu) e quase congelam ao relento. Aliás, eu amo como a série debocha do patriotismo estadunidense nas minúcias.
Enquanto todo mundo colhe transtornos, a nossa queen Lorelai só desfruta. Comemorou a perda do jantar na casa da família com a qual não se identifica, foi ao cinema carregando muitos hambúrgueres - o único defeito da série é a alimentação do núcleo principal -, levou o professor ilhado pra dormir na sua casa, se entupiu de café e seguiu entusiasmada a cada inalada gélida.
Como uma boa cria, fã e devota incondicional de Lorelai Gilmore, também adquiri a expertise de sentir a aproximação de uma frente fria, mas na versão subtropical. O vento muda. Os passarinhos se aquietam. Os morros são encobertos pela neblina. As plantas se encolhem, especialmente as miúdas, como as folhinhas de hortelã. Os cachorros da minha rua desfilam com roupinhas e ficam menos alvoroçados. Uma sacola plástica voando na calçada deixa de ser anunciada com um festival de latidos.
Eu nasci numa manhã cortante de julho, como são quase todas do interior de Santa Catarina nessa época, principalmente antes do colapso climático se agravar. Vim pra cidade grande ainda bebê, mas passava todas as férias escolares, os feriados e muitos fins de semana por lá.
Ao contrário de boa parte das pessoas com algum pingo de sensatez, o ápice da minha alegria de criança nas férias de julho era percorrer o centro da cidade natal o mais tarde possível pra conferir a temperatura. Quando avisava na rádio que poderia bater zero, os pobre dos adultos da família precisavam me acompanhar a pé até o termômetro mais próximo pra confirmar a performance climática da natureza ao vivo e a cores. Lembro de avistar um -1 histórico perto da meia noite.
Nesse período também rola o São João da igreja matriz, que foi encolhendo, perdendo os brinquedos de parque de diversão, os shows, mas ainda carrega certo charme. Foi o sonho dos sonhos ter idade suficiente pra poder desfilar com o meu próprio copo de isopor de quentão por lá. No mesmo mês acontecia o babilônio Baile da Bruxa, onde só é permitido entrar vestindo preto, e pro qual arrastei minha prima e todas as amigas da capital. Era a única festa em que a gente ia pro salão alisar o cabelo e achava maravilhoso ficar espremida num imenso galpão escuro ouvindo umas bandas de barzinho tocarem Jota Quest.
No Ensino Médio, também perturbei minhas amigas pra encararem uma excursão de 4 horas de vã até a Festa do Pinhão na cidade de Lages, na Serra, pra gente acumular umas histórias de frio. Nesse caso, além das temperaturas estarem frustrantemente encaráveis, em torno dos 5 graus, tive meu primeiro celular da vida furtado enquanto me servia num buffet de cachorro quente no intervalo de um show sertanejo. Quem sabe esse causo tenha despertado a chama pela minha futura ojeriza a ultraprocessados.
Ainda passei um dos maiores frios da vida bem longe das minhas cobertas, durante o Congresso Nacional de Jornalistas em Ouro Preto (MG), em 2006. Não pegava telefone na estalagem que sediou o evento, os celulares não tinham internet, os banheiros não contavam com aquecedor, mas rolou fogueira e cachaça quase todas as noites. Deve ser por isso que eu só lembro de uma conferência, da dona Marilena Chauí. Aliás, foi minha única experiência de passar aniversário apenas com pessoas desconhecidas, um ponto crítico pra cancerianes, mas menos sofrido por se tratar de Minas Gerais. Deliciosa essa capacidade mineira de acolher qualquer indivíduo como se fosse do mesmo sangue.
Embora guarde uns casacos de peso, nunca fiz um boneco de neve na vida, só toquei em floquinhos tímidos no Chile e em São Joaquim (SC). Nunca morei num lugar com alguma coincidência em relação à fictícia Star Hollow, inspirada numa cidadezinha canadense (não tenho certeza, mas tô com preguiça de confirmar). Mesmo assim, reassisto o fatídico capítulo da nevasca de Gilmore Girls todo ano, assim que o inverno dá as caras aqui.
Não é um episódio digno de prêmio. Não tem um diálogo que vai entrar pra história, uma atuação magnânima, uma pegação inesperada, um desfecho arrebatador. A própria série tem dezenas de capítulos mais interessantes e inesquecíveis. Mas além de amar rituais, especialmente rituais que acompanham as transições das estações do ano, eu continuo a reassistir e a amar o episódio oito da primeira temporada. Tem um negocinho ali que tá cada vez mais raro, o entusiasmo espontâneo pelo desacontecimento.
Não aguento mais essa era da performance. Parece que o padrão agora é viver segundo a Heleninha dos primeiros capítulos de Vale Tudo, com suas mexidinhas de cabeça exageradas. Tudo é intenso, emocionado, disruptivo. “O melhor show que esse país já viu”, “o romance do século”, “a grande partida de futebol dos últimos tempos”, “o tênis da sua vida”, “a pior novela da história da Globo”. Até eu, que amo uma hipérbole, me sinto confusa e exausta no meio de tanta epifania.
Pelo andar da carruagem, não devo abandonar Gilmore Girls tão cedo.
🔸TV. Falando em intensidade, tá complicado seguir com qualquer série depois de Pablo e Luisão ou a nova temporada de Avisa lá que eu vou. Voltei a espiar Modern Family (Disney +) nas noites de domingo agarrada com o meu digníssimo esposo e nossas fatias de pizza, mas tenho achado fraquinho, fraquinho. Nos primeiros minutos já dá pra prever todo o roteiro e o desfecho. As casas também não têm uma toalhinha de crochê na mesa, um pedaço de bombril em cima da antena da TV. Não há um cachorrinho caramelo perdido na rua, uma vizinha que coloca o nome de Deus em vão em cada frase. O Paulo Vieira elevou meu delírio pela brasilidade.
Nessa onda de produções nacionais, o conje sugeriu maratonarmos o Polipolar Show, do Canal Brasil. E, apesar do surto do formato, a delícia do Michel Melamed está arrancando preciosidades dos entrevistados Adorando.
🔸LIVRO. Não pegava em poesia desde ASMA, da rainha Adelaide Ivánova. Aí Gustavo, amigo de infância vivendo em Brasília, disse que tinha acabado de ler uma autora catarinense maravilhosa e me enviou um exemplar de presente. Me falta repertório para definir Tanatografia da mãe, de Isadora Foés Krieger. Mas acho que a abstração faz parte da experiência de ler poesia. Entre seus versos, está: “este poema foi escrito com as minhas cinzas”. Parece uma grande carta-poema escrita pra mãe em seguida do seu falecimento, de covid em 2021. Dolorido, bonito, visceral, pra encarar numa sentada só.
🔸FILME. Recebi várias indicações e li boas resenhas de Nonnas (Netflix). Mais um filme que exalta a força das receitas italianas que ultrapassam gerações. Amo filmes de comida, sou fissurada em macarrão caseiro, mas o excesso de clichês da categoria costuma me frustrar. Só dei o play nesse caso porque é baseado numa história real. Mas embora tenha ótimas atuações, com várias atrizes ganhadoras de Oscar, o enredo do filho que perde a mãe e resolve investir num restaurante de clima familiar pra resgatar suas memórias, onde só nonnas cozinham, soa meio desperdiçado. Esperei um filme gostosinho e emocionante, encontrei uma breguice carregada de estereótipos num roteiro xoxo. Dá pra aguentar de boa, desde que não se espere mais do que o formato Sessão da Tarde. Indico muito mais a série Recomeço (Netflix), com a maravilhosa Zoe Saldaña, quando o assunto é esse combo: trama real + comida italiana + luto.
🔸NEWSLETTER. O querido Christian von Koenig, escritor, meu conterrâneo e leitor do Jornal do Veneno, mantém uma ótima news aqui no Substack, com aquele clima de tristezas disfarçadas de piadas. Mas nessa edição abaixo ele se superou, ainda mais sendo publicada nesta plataforma, onde todo mundo dá pinta de hipster desconstruído formado em escola bilíngue. Imperdível.
🔸RECEITA. Não fui abduzida nem dormi menos que o padrão. Uma receita com “proteico” no nome e “fit” no perfil foi a coisa mais saborosa que ingeri neste mês junino. Tudo culpa de Dona Neide Aparecida, minha mãe, que está numa fase vegana e natureba desde que participou de um retiro adventista, sendo ela macumbeira hahahaha. A matriarca chegou aqui em casa do nada com duas fatias de uma quiche de cebola caramelizada de aparência mediana. E olha que eu não caio em qualquer receita onde o tofu entra no lugar do queijo, ovos ou creme de leite. Ele é muito mais seco, não dá pra sair substituindo assim, de qualquer jeito. Mas deu bom, viu? O recheio é levemente azedinho e a cebola caramelizada deu um ótimo contraste. Já vai até entrar pro nosso menu fixo do natal.
Fechamos?
Obrigada por seguir por mais um mês junto comigo, pela confiança e atenção.
Um beijo sabor sushi de pamonha com crocante de pistache,
Juliana.
Eu tbm já fui amante do frio Ju. Passei a infância na zona rural de uma esquecida cidade do extremo oeste catarinense, ,moravamos numa casinha de madeira na beira de um riacho, com muito mato e moros ao redor. Era frio pra caramba, e só contavamos com um fogão a lenha e cobertores meio precários para nos aquecer, ainda assim eu amava o inverno. Hoje, já tendo passado dos 30 anos, me pergunto como eu sobrevivia a esses invernos, concluo que as crianças sentem menos frio. Atualmente para dormir preciso de bolsas termicas, aquecedor, roupas quentes, inumeros cobertores, e ainda assim é díficil. Durante o dia ando parecendo que estou indo pro ártico. Acho que não gosto mais do inverno (tampouco do calor extenuante), mas guardo também boas memórias da infância dessa estação.
Gilmore Girls, minha série favorita da vida! Eu e meu marido (que eu transformei em um grande fã da série e viu ela inteirinha comigo durante a pandemia) brincamos que moramos em star hollow pq nosso bairro aqui em Barcelona tem ares de Pueblo e umas festividades bizarras. Tem dia que a gente dobra a esquina e cruza uma show de dança da terceira idade na praça, no outro é uma passeata de donos de São Bernardo com mulheres vestindo roupas típicas da suíças da montanha e cachorros com coroas de flores; uma vez por ano tem um feriado em que um grupo mirrado de umas seis pessoas sai de roupas típicas sei lá de que década, com espingardas dando tiros pro alto e param pra uma encenação na torre da praça...juro, é igualmente maravilhoso!
Esse filme das Nonnas é ruim demais. Desisti depois de uns 20 minutos - e olha que eu consigo ver coisas bem bibas quando se trata de filmes com comida hahaha