Comida sem veneno é coisa de madame? #101
Em clima de natal, três iniciativas que se contrapõem à ideia do orgânico caríssimo na bandeja de isopor do supermercado
Olá, venener. Feliz naaaaaaatal! Parece que faz aaaanos da primeira edição desse ano sobre as expectativas pros preços dos alimentos, hein? Mas é isso. Dezembro chegou com o seu ritmo frenético e tóxico, daqui a pouco o ano vira, novo ciclo, esperanças renovadas e nãnãnã.

Pra decepção das minhas tias, minha faxina natalina se resumiu a 1 armário da cozinha e o guarda-roupa do meu filho hahahaha. A última vez que limpei a geladeira por dentro foi em setembro. Mas é isso que a gente consegue quando não tem empregada e quando gasta boa parte do tempo doméstico cozinhando.
Nesta edição, tinha muita notícia pra desenrolar. Podia falar sobre o maior retrocesso desse ano em termos de veneno, mas já gravei este vídeo sobre. Logo o Ceará, o nosso único reduto livre do avião de agrotóxico, acaba de aprovar a pulverização aérea por drones. Já saiu no Diário Oficial e contou com apoio de parte da bancada de esquerda e do governador, Elmano Freitas (PT), tá? Esse mesmo abençoado é co-autor da lei que proibiu o avião de veneno antes. Agora mudou de lado, tu acredita? O Ceará tá se destacando nas exportações de frutas e os empresários do setor pressionam pela volta da pulverização aérea. Essa nova lei é um passo pra trás gigantesco, que vai respingar no resto do país.
Mas embora eu seja amiga da ciência e dos fatos, também tenho um lado tilelê, que ocupa 5% do meu cérebro. Nessas datas especiais, esse lado transborda hahahahaha. Precisava fechar o ano de forma um tantinho menos catastrófica.
Lembra que nas edições anteriores, no bloco Segura o céu, eu contei a história da Rede Ecológica do Rio de Janeiro e do Raízes do Brasil, que funciona como uma frente do Movimento dos Pequenos Agricultores e Agricultoras? Então, na edição de hoje, vou falar de outras três iniciativas semelhantes, que levam comida sem veneno a quem não pode dar R$20 por um abacaxi.
Essas cinco iniciativas foram mapeadas pelo projeto Afluentes do Rio: Da prática à política - experiências e redes de agroecologia em defesa da alimentação saudável e adequada no Brasil, coordenado pela AS-PTA. Fui convidada pela organização para visitar uma delas presencialmente e conhecer de perto os perrengues, as conquistas. Mas como as demandas maternas não me permitem no momento, resolvi trazer tudo aqui pro Jornal do Veneno a distância mesmo.
Ahhhh! Vai ter mais um Jornal do Veneno antes do ano acabar. Não esqueci da promessa, hein? De que em cada fim de semestre teríamos um quizz retomando os assuntos das edições passadas. Então aproveita pra deixar aquele tio mala falando sozinho na sala e bora deixar as edições em dia pra gabaritar o quizz da semana que vem. Eu tenho altas expectativas sobre a audiência venener!! hahaha
Boa leitura. :)
Onde querem nada, tem agrofloresta

Ana Paula da Cruz Santos cresceu com a mão na terra, rodeada de mulheres em quintais com bananeira, mandioca, ervas medicinais e panelas fumegantes. Sua veia educadora já vinha dos tempos de adolescente, quando começou a alfabetizar os mais novos das redondezas.
Não costuma se definir como ambientalista porque não precisa. Plantar, preservar e cuidar sempre guiaram a sua trajetória, como ela mesma conta:
Ao acompanhar famílias muito vulneráveis ocuparem a Serra da Misericórdia, o último remanescente de floresta urbana da Zona Norte do Rio de Janeiro, Ana começou um movimento. Junto com outros moradores da região, deu os primeiros passos pra reflorestar a vegetação e incentivar produção de alimentos da forma como aprendeu nos quintais da sua história: sem fertilizantes sintéticos nem pesticidas. Com uma planta fortalecendo a outra.
Mas tudo isso conectado à luta pelo direito à moradia. Assim, a favela Terra Prometida, que tinha tudo para ser mais um território de ausências, passou a sediar o Centro de Integração Serra da Misericórdia (CEM).

O local permanece sem saneamento básico, sem asfalto, sem coleta de lixo, sem qualquer forma de integração urbana e com apenas um acesso via carro, que passa por uma pedreira. Por isso, como Ana lembra, não é qualquer um que se dispõe a pisar lá.
Outro desafio são as operações policiais. A mais recente impediu que os moradores e voluntários circulassem pelo território por 18 horas seguidas. Por essa razão, atividades e eventos são cancelados com muita frequência.
O calor, que só piora a cada ano, e a redução do volume de chuvas em decorrência das mudanças climáticas também dificultam o desenvolvimento das hortas e desafiam a produção de alimentos.
Todo o cenário desanima, mas reforça a relevância e o impacto do projeto pra comunidade. Só durante a pandemia, o CEM mobilizou parceiros e moradores pra construção de cisternas, pra produzir sabão a partir de óleo de cozinha, organizou feiras solidárias com alimentos da reforma agrária, distribuiu refeições e construiu viveiros de mudas e vasos pra vender.
Ah! As integrantes do movimento também vendem carne de jaca verde e divulgam as maravilhas da chaya, um matinho comestível de origem mexicana que cresce rápido e pode ser preparado como couve ou espinafre.
O maior orgulho da cofundadora, no entanto, é a Escola Popular de Agroecologia em parceira com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Lá, as crianças e adolescentes da Terra Prometida aprendem a manejar as hortas e os quintais, participam de debates, fazem atividades, aprendem línguas, se encontram, são acolhidas.

Ao longo de sua história, o CEM já realizou 44 projetos, dos quais 23 continuam ativos no momento. Trata-se de uma organização sem fins lucrativos de base comunitária de e resiliência impressionante. Nem um incêndio e a perda da primeira sede pararam a comunidade, especialmente as mulheres, protagonistas na gestão e articulação.
Conseguir financiamento por meio de editais, integrar várias redes e estar em diálogo com organizações de abrangência nacional, como o MST, fortalecem o Centro carioca. Mas o futuro do CEM depende de mais estabilidade.
Apesar de ter sua cozinha solidária licenciada e, por isso, receber apoio do Programa de Aquisição de Alimentos do governo federal, ainda falta o básico: financiamento recorrente, infraestrutura, material, formas de geração de renda contínuas, formalizar a instituição, mais voluntários e proteger melhor a agrofloresta dos bois que estão soltos pela Serra.
O CEM é uma das 101 iniciativas da Rede Favela Sustentável que atuam no eixo de soberania alimentar. Do total de projetos, 70% são liderados por mulheres e 74% por pessoas negras. Mesmo num contexto super urbano, na capital ou na região metropolitana do Rio, 38% deles trocam sementes entre si e 26% plantam e distribuem alimentos frescos livres de agrotóxicos.

Em setembro desse ano, o governo do espojo da Janja lançou o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana. Por outro lado, as medidas de fomento à atividade permanecem no campo da piada. Como parte da iniciativa, o Ministério do Meio Ambiente abriu um edital para apoiar projetos que promovam alimentação saudável, geração de emprego, destinem resíduos orgânicos de forma adequada e incentivem ações de adaptação às mudanças climáticas. O edital é de R$ 7 milhões no total.
Quem também nos alimenta é agricultura familiar, mais presente no campo. O plano federal referente a 2024/2025 prevê R$85,7 bilhões em linhas de créditos e ações de fomento pro setor. Já às grandes propriedades, que fornecem commodities agrícolas para o mercado externo, podem contar com R$400,59 bilhões. Isto é, nada disso é por acaso.
[Observação: prometi que esta edição seria inspiradora, mas também não faço milagres diante dos contrastes desse país hahaha]
É só pegar
Ainda no Rio de Janeiro, um projeto de atuação semelhante encerra neste mês devido ao término do financiamento. O Periferia Viva foi criado no contexto da pandemia, contemplado com uma chamada pública da Fiocruz e extrapola o contexto urbano.
Ele envolve oito comunidades (Sereno, Caixa D´água, Morro da Fé, Paz, Caracol, Cerro Corá, Rocinha e o bairro de Cavalcanti) e dois assentamentos rurais (Roseli Nunes, em Piraí, e Irmã Dorothy, em Quatis). Juntos, organizaram hortas comunitárias, uma cozinha solidária, feiras populares, formações e financiaram lavouras no sistema agroflorestal.

A Horta da Penha, por exemplo, no Morro do Sereno, é mantida por 20 mulheres, quase todas mães solo. Além de se organizar nos cuidados com as plantas (só quem viveu sabe o trabalho que dá), elas realizam um almoço coletivo por mês com os frutos das colheitas e disseminam as sobras pra comunidade. Taioba sempre dá, assim como mandioca, abóbora, milho, pepino, temperos e ervas medicinais, a exemplo da cidreira e da hortelã.
A distribuição é feita no formato de feira livre: dispõem os alimentos numa mesa grande e todo mundo pode pegar. Nesse esquema, elas alimentam quase 80 famílias.
Ainda na Zona Norte, mas agora no Morro da Primavera, bairro de Cavalcanti, o Periferia Viva organiza feiras populares com produtos dos assentados da reforma agrária, além de atividades culturais. Rola cerca de uma tonelada de alimento sem veneno por evento pra quem quiser pegar. Assim mesmo, à vontade.
Com o apoio da chamada pública, a campanha conseguiu que os assentamentos investissem no plantio de árvores frutíferas nativas da Mata Atlântica e criassem unidades de produção exclusivas para alimentar as pessoas de baixa renda da cidade, focando na maior demanda das feiras e cozinhas solidárias, as hortaliças.
Todas essas ações só foram possíveis porque tiveram muita gente envolvida: integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), do Levante Popular da Juventude, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Consulta Popular.
Agora imagine tudo isso de forma permanente e articulado com os equipamentos públicos. Sem falar que todas essas ações não forram só o estômago, né? O direito mais básico de todos.
Elas melhoram a autoestima das pessoas, fazem com que a gente sinta mais orgulho de onde mora, conectam com a terra, incentivam o pensamento crítico, ajudam a destinar melhor os resíduos por meio da compostagem, geram autonomia e emancipação pras mulheres. Eu mesma tô longe de um contexto de vulnerabilidade, mas nem consigo descrever a alegria que é catar uma cebolinha do quintal em vez de comprar do supermercado.
Cozinhas solidárias emergenciais
As tragédias decorrentes de fenômenos climáticos extremos também impulsionam pessoas, organizações e coletivos em todo o país a agir. Assim como o MST, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é referência no país nesse quesito, em se apressar pra alimentar as pessoas desalojadas, desabrigadas ou impactadas de alguma forma pelas enchentes.
De fora, parece algo muito simples, né? Basta juntar pessoas pra cozinhar, arrecadar alimentos, organizar a distribuição, só. Mas na prática, cada evento demanda uma série de desafios logísticos. E estamos falando de lugares onde até o abastecimento de água costuma estar comprometido, pontes desapareceram, estradas estão bloqueadas pela lama.
A experiência de Petrópolis, em 2022, foi o embrião das Cozinhas Solidárias de Emergência. Foram 235 mortos e 4 mil pessoas desabrigadas devido às chuvas dos dias 15 e 16 de fevereiro daquele ano na cidade fluminense. Até o momento, o MTST-RJ tocava duas cozinhas solidárias, uma em Niterói e outra na Lapa, na capital.
Na primeira noite em que a chuva deu trégua, a organização do movimento e militantes do PSOL articularam a ida até a cidade, encontraram um imóvel com estrutura pra cozinha industrial e entraram em contato com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) pra fornecer os alimentos. Na época, a Fiocruz financiava o projeto Solidariedade Sem Veneno, o que tornou a compra da comida mais ágil e possível.
Os primeiros equipamentos e utensílios de cozinha chegaram a Petrópolis no dia 19 de fevereiro. Os camponeses entregaram hortaliças, tomate, inhame, batata doce, cenoura, arroz, feijão e ovos, quase tudo plantado no entorno, sem herbicidas e afins. Outros alimentos, como óleo, macarrão e frango, foram comprados no supermercado local pra complementar as refeições.

Vinte voluntários forneceram almoço e janta por quatro dias e três noites pra 1.600 pessoas. As quentinhas saíam de um sítio e eram entregues de van, fornecida pelos apoiadores. Nos dias seguintes, as doações começaram a se concentrar nos mesmos locais, enquanto outras áreas não recebiam qualquer assistência dos governos. Coube também à equipe da cozinha solidária a incumbência de identificar e chegar até essa galera.
A equipe repetiu a atuação por semanas e depois seguiu com uma operação por mês até julho do mesmo ano. Dessas últimas vezes, já mais bem articulada com as lideranças comunitárias e associações locais.
A experiência em Petrópolis fez com que o MTST desenvolvesse um modelo de atuação para situações pontuais. Em 2024, o movimento acionou o modelo novamente: implementou uma Cozinha Solidária Emergencial para alimentar as vítimas das enchentes de Rio Branco, no Acre, e em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Não dá pra negar que todas essas iniciativas aquecem o coração. A gente tá falando de organizações e frentes que não se resumem a levar vegetais plantados de forma ecológica pra quem não pode pagar R$15 num brócolis.
Elas também pressionam governos, mobilizam outros setores da sociedade, dão uma aula de solidariedade e fazem esse embate contra o ‘progresso’, o racismo ambiental, a agricultura de larga escala e as desigualdades no acesso à terra. Contudo, ainda esbarram nos desafios da falta de financiamento contínuo, apoio logístico e, muitas vezes, no preconceito da galera do orgânico gourmet.
📝Pra pensar fora da caixa, especialmente sobre os significados mais profundos dos quintais: livro A terra dá, a terra quer, do mestre Antônio Bispo dos Santos.
Fechaaaaaaaaaaaamos!
Coma muita uva passa por mim e nada de farofa low carb ou pavê proteico, hein? Ou pelo menos não me conta que você cometeu essas atrocidades hahaha.
Um beijo, feliz natal e até sábado que vem,
Juliana.
Ju, muito obrigado por me ajudar a abrir os olhos e conseguir acompanhar de forma mais organizada esses conteúdos. Tu é didática demais e necessária ao extremo (pelo menos até a gente conseguir fazer nossa tão esperada revolução)!
Boas festas pra todo mundo e sigamos na luta por um mundo melhor!
Não me conformo com 400 bi pro agro-veneno-morte enquanto a a agricultura familiar que põe comida em nossas mesas tenha módicos 85 bi! No mínimo pra começar a equilibrar essa conta o governo tinha que imediatamente destinar 100 bi do agro para a agricultura familiar, seria pouco, mas pelo menos mostraria boa vontade de um governo que diz que acabar com a fome é prioridade.