Fim da escala 6x1 #96
Bares e restaurantes sobreviveriam à proposta de redução nas jornadas de trabalho?
Olá, venener do meu coração. Bom sábado pra você que não nasceu na mesma cidade do homem bomba. Pois é. Meus tios sabem até onde morava o dito cujo que tentou explodir o Supremo Tribunal Federal. Mais do que destacar o desajuste psíquico do moço, desenterrar todo o seu passado, acho importante olhar pro contexto. Um contexto onde muitas peças alimentam essa engrenagem movida a ódio e notícias falsas.
São muitos os Silvas inseridos nesses grupos de extrema direita que poderiam ter feito a mesmíssima coisa ou trabalhado em conjunto, aumentando a proporção do ato criminoso.
Não dá pra negar que todo mundo tá insatisfeito com a política institucional, não se vê representado, mas tem crescido o número de pessoas que canaliza isso ao avesso, se identifica facilmente com o discurso antissistema da corja fascista porque ele oferece saídas mais rápidas e, consequentemente, mais violentas.
Nesta sexta-feira em que te escrevo é feriado e rolaram dezenas de manifestações de apoio à PEC pela redução das jornadas de trabalho. Impossível não se contagiar com o engajamento em torno do projeto da deputada Erika Hilton. Esse debate vem muito bem a calhar agora, pós eleições, pra afugentar esse clima de derrotismo e organizar as lutas. Um frescor.
Temos mais uma oportunidade de mobilizar as pessoas em torno de uma causa que abarca boa parte da população e que diz respeito à dignidade, o alicerce da existência humana. Por enquanto, os ventos parecem estar a nosso favor, assim como rolou com a PEC das Praias e com o PL do Estupro.
Este Jornal do Veneno se prepõe a discutir o impacto do fim da escala de trabalho 6x1 pro setor gastronômico tendo em vista que várias organizações empresariais começam a levantar suas asinhas. E vai ser mais curtinho porque não vou falar de dignidade sem priorizar a minha, especialmente num feriado.
Boa leitura! :)
“A história da humanidade é a história da luta de classe”
(frase de um certo senhor alemão que incomoda muita gente)
🌎 GIRO DE NOTÍCIAS
Associação afirma que o fim da escala 6x1 aumentaria os preços dos bares e restaurantes em até 15%. Setor se destaca pelo adoecimento e superexploração de seus profissionais.
Poucas questões são tão antigas quanto a queda de braço entre direitos humanos e economia. Mas existe uma diferença substancial entre ambos: os direitos humanos têm rostos enquanto a economia é um conceito um tanto mais abstrato.
No século dezenove, dizia-se que o fim da escravização inviabilizaria a produção agropecuária e, com isso, adeus ao desenvolvimento do país! No século seguinte, o pânico se alastrou por conta do fim do trabalho infantil, da licença maternidade, do salário mínimo, do décimo terceiro salário. Em 2013, a regulamentação das trabalhadoras domésticas seria o algoz do crescimento.
Nenhuma dessas conquistas históricas impediu que bancos batessem recordes de lucros, que o setor agrícola se expandisse, que empresas gringas investissem no país, que novas oportunidades de trabalho surgissem e que a classe média mais abastada permanecesse sem limpar a própria privada. Por outro lado, grande parte da população continua sendo moída por uma rotina em que o trabalho ocupa a maior parte da vida. As mulheres, especialmente as mulheres negras e de baixa renda, ainda lidam com uma outra jornada invisível: os cuidados com a casa e com os filhos, não remunerados.
Os limites pras escalas de trabalho também estiveram entre os grandes embates da Constituição de 1988. Um ano antes de sua publicação, sindicatos, organizações e deputados defenderam o regime máximo de 40 horas semanais, como o esposo da Janja (sim, ele foi parlamentar!), mas o interesse das grandes empresas sobressaiu.
Em seu artigo número sete, a nossa querida carta magna atesta que o tempo de trabalho não pode ultrapassar 44 horas semanais. Por isso, milhões de brasileiros trabalham oito horas diárias de segunda a sexta e ainda precisam bater ponto no sábado. A rotina é mais comum no comércio em geral, setor hoteleiro e gastronômico.
Mas a tendência mundial de reduzir as jornadas nunca parou de respingar por aqui. Em 2015, foi a vez do senador Paulo Paim (PT-RS) apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) pra diminuir o tempo semanal de trabalho de forma gradual, chegando ao limite de 36 horas semanais. Na França, por exemplo, esse limite já é de 35 horas.
Ao todo, foram nove os projetos nesse sentido que passaram pelo congresso, seis já foram arquivados e outros três estão empacados nos trâmites e comissões.
Contudo, essas iniciativas não propõem o fim da jornada de trabalho de seis dias com um único de folga, abreviada de 6x1, tampouco tomaram as redes sociais ou organizaram os trabalhadores em mobilizações nas ruas. Essa reivindicação só tomou corpo a partir de duas lideranças que destoam do perfil “monocultura de eucalipto” da política brasileira (eu amo essa expressão da jornalista Flávia Oliveira).
Natural do Tocantins, Rick Azevedo tem 30 anos e viralizou na internet com um vídeo sobre a exaustão decorrente do trabalho de balconista numa farmácia, onde cumpria 44 horas semanais. O desabafo virou um grupo no WhatsApp, um coletivo de pessoas que se identifica com a pauta e culminou na criação do movimento Vida Além do Trabalho (VAT). Em outubro, Rick foi eleito vereador pela cidade do Rio de Janeiro com quase 30 mil votos, o mais votado entre os eleitos do PSOL.
O Vida Além do Trabalho concretizou-se numa petição, já com 2 milhões de assinaturas, e inspirou uma nova tentativa de mudança na constituição. Dessa vez, a autora da PEC é a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP). A parlamentar conseguiu as 171 assinaturas necessárias pra fazer o projeto caminhar dentro da Câmara dos Deputados, que ficou conhecido como PEC do fim da escala 6x1. Sua proposta é reduzir o limite de horas semanais trabalhadas de 44 pra 36 horas com jornadas de até 4 dias.
No Chile, uma lei de 2017 permite a semana de trabalho de quatro dias. Porém, a mudança não pegou porque depende de um acordo entre empregadores e sindicatos que representem mais de 30% dos trabalhadores de cada empresa.
O apoio do governo brasileiro começou tímido, com uma nota sofrível do Ministério do Trabalho. Mas ao longo da semana o próprio ministro da pasta, Luiz Marinho, refez o discurso e mostrou um pouco mais de ânimo. O vice-presidente, senhor picolé de chuchu, não conteve o entusiasmo com a mudança e citou a tendência mundial. Os ministros da Comunicação e da Igualdade Racial, Paulo Pimenta e Anielle Franco, se apressaram em apoiar a pauta.
Como era de se esperar, representantes das associações empresariais correram pra entornar o caldo. A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) tem se destacado nesse sentido com um discurso pronto, de pânico, sem contribuir pro debate.
A entidade repete o mesmo nível de terrorismo da discussão sobre incluir os refrigerantes no imposto seletivo da reforma tributária, aquele papo de que isso levaria o setor à falência por um possível aumento no preço das bebidas, blá blá blá.
O presidente da associação, Paulo Solmucci, classificou a PEC como “ideia estapafúrdia” e soltou uma nota em que defende que os estabelecimentos precisariam reduzir o horário de funcionamento, sofreriam o aumento dos custos operacionais e tudo isso acarretaria no aumento do preço final dos cardápios em até 15%. Não se sabe de onde o consagrado tirou essa estimativa.
Os impactos da PEC
A Abrasel também aproveitou o ensejo pra informar que um quinto dos bares e restaurantes trabalha sob prejuízo. Esta é a realidade do Libre Café Vegano, em Natal, Rio Grande do Norte. Conversei com uma das sócias, Luciana Carvalho, 40 anos, que é professora de inglês, militante, cozinheira e agora empresária. Apesar de orgulhosa do negócio, não pude deixar de notar o cansaço e o desânimo na sua voz. Desde que abraçou a empreitada, Luciana emagreceu, passa menos tempo com a família e nunca tem horário pra encerrar o expediente.
O empreendimento potiguar funciona de terça à sábado oferecendo lanches e almoço produzidos pelas duas sócias com o apoio de três funcionários contratados pelo regime CLT. Nesse ano, apenas um mês não fechou no vermelho. Segundo as proprietárias, os perrengues pra manter o negócio são quase impossíveis de se resumir e ultrapassam a folha de pagamento.
O cenário desafiador, no entanto, não inviabilizou o apoio das duas à PEC da redução das jornadas. “Não quero pros outros o que não quero pra mim”, afirmou Carvalho. Por outro lado, a microempresária acredita que precisaria contratar um novo funcionário pra dar conta de uma redução de jornada pra 36 horas semanais, o que é inviável no momento.
Uma das saídas sugeridas por ela mira na redução dos impostos pra empresas desse tamanho, o que poderia ser compensado pela taxação dos bilionários, projeto que acaba de ser rejeitado na Câmara de Deputados.
Apesar de ser um restaurante pequeno, de comida saudável, artesanal, brasileira e maravilhosa, o Libre paga tributos na mesma proporção que uma grande rede de fast food, não tem acesso à credito com juros mais baixos nem nenhum tipo de incentivo do Estado.
O chef e pesquisador Max Jaques, autor do livro Comida no cotidiano, carrega uma bagagem com dificuldades semelhantes. Acabou de fechar as portas de um restaurante de comida brasileira em Blumenau, Santa Catarina, depois de uma experiência de três meses. O retorno do empreendimento foi positivo, mas ficou claro que se tornaria insustentável sem políticas de apoio aos pequenos negócios gastronômicos, sem educação continuada gratuita pros profissionais, linhas de créditos e outras estratégias que devem ser promovidas pelo Estado.
Pro chef catarinense, o grande empecilho do ramo envolve a necessidade de um investimento inicial muito alto, além da baixa lucratividade: uma média de 6 a 8% do faturamento bruto.
“Nesse setor, sendo apenas um Silva é preciso contar com todos os santos. Sem um investidor que entenda que o retorno de investimento será baixo e a médio e longo prazo, a realidade da grande maioria dos negócios de alimentação e bebidas no Brasil é de muito trabalho, pouco lucro e a banalização da superexploração do trabalho”, observa o cozinheiro.
Durante a nossa conversa, Max foi taxativo: falar em aumento de preços e redução dos lucros com o fim da jornada 6x1 é precoce e desonesto. Existem saídas e já existem empreendimentos operando na escala 5x2 ou 4x3.
O cozinheiro cutuca os colegas de profissão pelo silêncio sobre a PEC e reafirma a importância de todos nos mobilizarmos por melhores condições de trabalho independentemente dos projetos de lei que tramitam no congresso.
O fim da escala 6x1 tende a aumentar o desgaste entre pequenos e médios empregadores exaustos operando no vermelho e seus funcionários exaustos com baixos salários. Por isso é necessária a interferência do Estado, a pressão popular e a politização do debate.
Afinal, não dá pra continuar como está. Se um setor da economia é baseado em superexploração, ele precisa mudar.
📝 Pra aprofundar: reportagem do UOL sobre saúde mental entre cozinheiros profissionais.
💡Pra entender o contexto: o paradoxo da falta de mão de obra no setor de restaurantes, edição da newsletter Fogo Baixo.
🔎 Pra olhar por outro ângulo: série The Bear, que tem a rotina insana e insuportável de um restaurante como pano de fundo.
É isso?
Pra fechar em grande estilo, trago uma sugestão de música que minha irmã, Dona Isabela, me mandou nesta semana. Amei demais e tem super a ver com os nossos papos semanais aqui.
Obrigada pela leitura generosa de sempre e pelo apoio.
Te espero no sábado que vem?
Um beijo,
Juliana.
A Abrasel já chorou com a proposta dos restaurantes e bares serem obrigados a fornecer água sem custo em restaurante. Me lembro de um evento deles na pandemia (o congresso que precisou ser online) com alguns ali entusiasmados com o então presidente (e isso já diz um bocado da visão de mundo e trabalho).
Perfeita e sensata como sempre! Ao ler o jornal de hoje fiquei pensando que a mudança é muito mais profunda do que, de modo geral, se analisa a questão. Sao caminhos opostos: nosso mundo tem exigido cada vez mais que os serviços estejam disponiveis para consumo 24x7 e no sentido oposto, diminuição da escala de trabalho (totalmente necessária, pertinente e saudável).Desse jeito acho bem dificil a conciliação. Penso que deveríamos também rever o consumo 24x7. Hoje é quase inconcebível que nao se encontre um supermercado aberto a qualquer hora do dia ou da noite... mas será que precisamos mesmo disso?