Futuro do delivery e da comida caseira #63
Mais a volta do quadro "Me engana que eu como"
[Recomendo que você leia pelo computador porque cansa menos e as imagens ficam mais nítidas]
Olááááá, venener. Bom sábado pra você. Tô muuuuuito feliz de te ver aqui, por você embarcar nessa onda totalmente contra a maré comigo, já que as estatísticas dizem que ninguém mais lê, que o texto acabou, que as pessoas só querem vídeo de meio segundo no tico tico. Nem conta nessa rede social eu tenho porque sou da geração Banheira do Gugu e só não coloco uma capa de crochê no meu filtro de barro porque é mais uma coisa pra lavar depois hahaha.
🌎 GIRO DE NOTÍCIAS
Ascensão do Ifood e o possível fim da comida caseira
Tanta coisa acontecendo e a gente precisando perder tempo pra responder trilhardário que falou bobagem pra se promover no meio de um camarote do carnaval de Salvador diante de um colunista da Folha que estava no local à convite da empresa.
Pensei mil vezes se trazia essa chatice pra cá, até porque várias galeras meteram o sarrafo no moço por nós (incluindo a apresentadora que tá na Europa e tem cozinheira em casa). Mas vou insistir siiiiiim porque a fala e a empresa respingam em várias problemáticas atuais.
Isso sem falar que a cereja do bolo da minha indignação nem foi a profecia pouco modesta do ryco, de que a sua marca seria incrível ao ponto de mudar toda uma cultura e ninguém mais querer cozinhar em casa. O que me pegou foi a razão: de que forma o aplicativo vai conseguir explorar AINDA MAIS a sua cadeia de “parceiros” a ponto de conseguir igualar o preço da comida caseira?
Antes de qualquer coisa, pega o teu café, teu chá, ou qualquer bebida que não tenha aromatizante, e vamo entender como essa figura, que poderia MUITO compor a série Succession ou estar no submarino que implodiu, chegou até aqui.
Segundo ele mesmo, Fabricio Bloisi, baiano, filho de um médico e de uma arquiteta, tudo começou por conta de um livro, que eu não faço ideia do título, mas que já deve ter ganhado uma resenha na revista Exame ou no canal do Primo Rico.
Somado à obra inspiradora, o jovem ainda almejava dirigir helicópteros (detalhe para o plural) desde pequeno. E assim seu espírito megalomaníaco foi se desenvolvendo, ganhando novas nuances, até chegar ao ponto de dizer abertamente em entrevistas que pode se tornar o novo Mark Zuckerberg (aquele do Facebook, que começou a criar gado alimentado com macadâmia).
Fabricio é o abençoado criador da Movile, empresa de tecnologia que engloba o PlayKids, aplicativo de conteúdo pra crianças, o Maplink, serviço de mapas, o Apontador, uma espécie de guia de entretenimento, a peruana Cinepapaya, de ingressos de cinema e teatro, e o Ifood.
O aplicativo de comida iniciou seu trabalho de entrega em 2015 e cresceu de forma galopante à medida que as compras via smartphones despontavam, o que foi acelerado pela pandemia, claro.
Mas o atropelamento de seus concorrentes, como Rappi e Uber Eats, se deu por uma sacada genial: oferecer condições “diferenciadas” a restaurantes e bares que assinavam contratos de exclusividade, como maior visibilidade no aplicativo. A benesse terminou no ano passado depois de um acordo com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que acusava a turma do Seu Fabricio de práticas que induzem ao monopólio do setor.
De toda forma, é impossível alcançar uma gigante que já detém 83% do mercado de entrega de refeições + farmácia + supermercado + vale alimentação/refeição. Repara no grau de sagacidade que foi a entrada da empresa no mercado dos vales. Você induz a pessoa a gastar o saldo dentro do próprio aplicativo!!!!
O Ifood tá replicando uma receitinha de sucesso dos grandes conglomerados de alimentos, como Nestlé, Ambev, JBS, Cargill, Pepsico, Wal-Mart: pouca preocupação com a origem dos produtos vendidos, exploração da mão de obra, especialmente na ponta da cadeia, abocanhamento da concorrência, diversificação constante de serviços/produtos, e investimentos monstruosos em estratégias marqueteiras pra melhorar sua reputação.
Assim que o Ifood ganha mais e mais manchetes de jornais por notícias negativas, passa a abrir o cofrinho pra bancar propagandas astronômicas. Fez campanhas com Anitta, Pabllo Vittar, Tata Werneck, Fabio Porchat, e até com cozinheiros, como Bela Gil e Rodrigo Hilbert. Ora, venener, se até a nossa rainha do churrasco de melancia e o homão da p*** pedem comida por aplicativo, quem somos nós pra fazer uma torta de brócolis do zero, né?
Esse estudo aqui, inclusive, indica que Omo, Ifood, Nivea, Natura e Brahma são as empresas que mais foram citadas com a #publi nas redes sociais.
O negócio bilionário do tio Fabricio também chegou com tudo no ramo musical, a exemplo de patrocínios que vão do São João de Caruaru ao Rock in Rio, e esportivo: foi um dos principais financiadores do canal do Casimiro na transmissão das duas últimas Copas do Mundo (feminina e masculina) e dos Jogos Pan-americanos. Nesse ano, ainda abocanhou a maior cota publicitária do BBB24, que aliás, um porre, hein? Já deu, gente.
Achou pouco? O nosso Zuckerberg brasileiro colocou dinheiros em 31 blocos de carnaval espalhados por São Paulo, Rio e Salvador nesse ano. Só nível de grandeza do Acadêmicos do Baixo Augusta, do Cordão da Bola Preta, além dos trios de Ivete Sangalo, Timbalada e Daniela Mercury.
No entanto, tudo isso parece não ser o suficiente para conquistar a nação da tapioca. Tanto que a empresa também é acusada de contratar agências pra promover a chamada “publicidade lado B”, do mesmo jeitinho que a extrema direita e o gabinete do ódio do ladrão de joias costumam fazer. No caso do Ifood, essa excelente reportagem da Agência Pública apontou que publicitários criavam perfis falsos nas redes com o objetivo de enfraquecer as mobilizações dos entregadores.
Na verdade, a falta de dignidade e direitos pra quem entrega a comida (o governo Lula prometeu que desse ano a regulamentação não passa, hein) tá longe de ser a grande pedra no sapato do Ifood. Pois elas são inúmeras.
A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) já acusou a gigante de cobrar taxas abusivas em cima das refeições vendidas (cerca de 28% do valor dos pratos) e de tornar os estabelecimentos reféns da marca. Nesse sentido, não param de surgir iniciativas de restaurantes que tentam fugir do Ifood, como criar aplicativos por nichos (como esse só de comida vegana) ou o seu próprio serviço de entrega, junto com investimentos em estratégias de divulgação na redes pra não depender da turma do Fabricio.
Outra questão que já tá fedendo no exterior e logo deve ganhar mais atenção por aqui envolve as dark kitchen ou “cozinhas fantasmas”. Sabe a pizzaria de bairro que só atende por delivery há 20 anos? É mais ou menos isso, só que um pouco mais invisível e sem lei. São cozinhas sem placa, sem sinalização, que não oferecem comida no local, só por entrega, muitas vezes dentro de prédios residenciais, e sem qualquer tipo de regularização. De acordo com uma pesquisa da Unicamp, 35% dos restaurantes cadastrados no Ifood em São Paulo são dark kitchen. E quem disse que o aplicativo deixa isso claro quando a gente vai escolher um pedido?
Os problemas sanitários e sonoros nas vizinhanças são tantos que a cidade de SP foi a primeira (e única até agora) a regulamentar essa atividade. Imagina, gente! As dark kitchen tão vendendo comida preparada numa cozinha qualquer, com funcionários que ninguém sabe como são contratados, sem CNPJ de restaurante necessariamente, sem inspeção da vigilância sanitária, nada.
E como toda empresa de comércio online, o Ifood ainda bate de frente com outra tendência fortíssima: a preocupação ambiental. Em 2021, a disparada nas vendas de comida por aplicativo contribuiu pra um aumento de 46% na geração de lixo plástico no Brasil. Como a empresa respondeu, venener? Com ações como pedir aos estabelecimentos pra incluir a opção de pedido sem talheres e guardanapos, risos; diz que incentiva o uso de embalagens compostáveis, risos; assinou 89752837438 pactos “sustentáveis”, risos; e abraçou com força, foco e fé o mercado dos créditos de carbono, risos, risos, risos.
Sim, o pessoal tem a coragem de dizer que compensou a emissão de gás carbônico emitido pelas motos das entregas porque colocou uns trocados em projetos de preservação na Amazônia. Enfim, já tivemos episódio do Jornal do Veneno sobre essa palhaçada e outro sobre fraudes nesse setor.
🍔 Quem pede comida por aplicativo e suas motivações
Esse levantamento da empresa Galunion, feito com pessoas acima de 18 anos em todas as regiões do país, constatou que 94% da classe A pede delivery ou comida pra retirar no local, o que cai um pouco quando a gente chega na classe C, 71%.
Por outro lado, o mesmo estudo sobre hábitos alimentares apontou que a maioria do país, 41%, ainda leva comida caseira pro trabalho ou come no refeitório da empresa, 22%. O percentual de quem pede delivery na hora da labuta ainda tá em torno de 12%, ficando atrás de quem sai pra comer em restaurante (15%) ou busca marmita (13%).
No caso dos sortudos que trabalham de casa, como esta que vos fala, a disparidade ainda é maior: 64% almoçam a própria comida ou feita pela família na maioria das vezes.
[O segredo é ter sempre feijão pronto no congelador e os legumes já higienizados. Não ter filhos também pode ajudar hahaha]
Quem pede delivery costuma escolher pizza (57%) ou comida japonesa/chinesa (44%) ou lanches como hambúrguer e cachorro-quente (43%). E como diz a minha família do interior, existe a comida de casa e a comida que se come no shopping hahaha. Conforme a pesquisa, a comida mais vendida pelo aplicativo é essa mesma das praças de alimentação.
E eis a contradição. O mesmo levantamento mostrou que as pessoas anseiam por mais opções de comida natureba e itens de café da manhã, o que é o oposto do que vem sendo pedido via aplicativo. Talvez por falta de oferta mesmo ou preço mais elevado, né?
E quando o assunto é preparar em casa, geral prefere refeições convencionais, como PF, saladas, massas e bebidas (café, chás, sucos e vitaminas).
Esse outro levantamento tratou das razões que fazem a gente recorrer ao delivery. Olha só. A maioria, 69% das pessoas entrevistadas, pede comida por aplicativo pela facilidade de não sair de casa, enquanto 38% quer satisfazer alguma curiosidade gastronômica ou comer algo que não sabe preparar (37%).
O sábado é o dia oficial dos pedidos, seguido de sexta e domingo, e o período da noite também predomina, o que conversa direitinho com a pesquisa anterior, né? Pra tristeza do tio Fabricio, a frequência da maioria ainda é baixa: abre o Ifood uma vez por semana ou a cada 15 dias (47%) e desembolsa entre R$ 51 - R$ 100 por mês.
Em resumo, o Ifood não parece interferir de forma expressiva no nosso hábito de cozinhar refeições. Ele se apropriou, isso sim, da prática de sair de casa pra comer. E entrou de forma mais assídua na vida de quem já não cozinhava a própria comida: classes A e B de grandes centros urbanos, em especial, do Sudeste. Gente que já comia muito em restaurante e pode terceirizar a tarefa pra funcionários próprios.
🍪 O grande inimigo ainda é um velho conhecido
Por enquanto, a maior ameaça ao feijão nosso de cada dia, saudável, fresquinho e cheiroso, não é a comida de aplicativo, mas a sintética, rápida, barata e fácil de encontrar. E não só no Brasil.
Por aqui, o bonde da salsicha e das bobagens fitnees camufladas de saudáveis representa 20% das calorias ingeridas diariamente pela população. Parece pouco se a gente comparar com a terra dos Beatles, cujo consumo beira os 50%. No entanto, pra um país de cultura alimentar muuuuito enraizada e abismos sociais, o estrago vai além das 57 mil mortes por ano ligadas ao consumo desses produtos.
A escalada dos ultraprocessados nos últimos dez anos ainda é maior entre pessoas negras e indígenas, moradoras de zonas rurais e populações com menores níveis de escolaridade das região Norte e Nordeste.
É isso, venener. Infelizmente, somos muitos os que trocam refeições à base de feijão, arroz, milho, tapioca, batata doce e verduras por massarocas comestíveis. Alguns que nem smartphone têm.
E por razões que todo mundo já sabe, com exceção daquele povo tóxico da força de vontade: falta de acesso a alimentos frescos, preço, praticidade, machismo, e macetada do marketing. Ou seja, se tem alguém que pode pôr fim à comida caseira no Brasil, é a categoria dos ultraprocessados.
Enfim, eu poderia encerrar com dicas de receitinhas vapt-vupt, como guacamole, pratos de uma panela só, além da sugestão de selarmos um compromisso coletivo com o fogão. Mas cozinhar não é um ato revolucionário, gente. Revolucionário é reduzir jornadas de trabalho, o fim do patriarcado e a extinção de grandes conglomerados exploradores que vendem produtos ou serviços capazes de apagar a nossa identidade.
📝 Pra aprofundar: episódio do podcast Prato Cheio. O que Milton Santos diria sobre o Ifood?
🔎 Pra consultar sempre: uma versão resumida do Guia Alimentar para a População Brasileira.
🦁 Pra defender a culinária brasileira com unhas e dentes: esse livro do cozinheiro, pesquisador e crush Max Jaques.
🛒ME ENGANA QUE EU COMO
Tá tendo cheetos, pipoquinha e biscoito PRA BEBÊS
A reestreia do bloco mais afrontoso do Jornal do Veneno precisa ser em grande estilo. Foi complicado escolher um tema, não nego, tendo em vista a infinidade de traquinagens que a nossa indústria de alimentos é capaz de aprontar em pouco tempo. Do outro lado, Anvisa e Justiça comem mosca, vale lembrar.
Resolvi enquadrar um produto que esteve no pano de fundo de um barraco recente no Instagram. E muito a contragosto vou citar mais uma vez a rainha de bateria da Faria Lima. É a segunda edição seguidaaaaaaaaa! Mas vou ser breve porque o Substack já subiu a tarja vermelha de limite de caracteres aceitáveis pra uma newsletter aqui.
Começa com fórmula pra recém-nascidos porque o leite materno pode ser fraco, né? Depois vem o composto lácteo ultraprocessado pra garantir que o bebê ingira todos os nutrientes necessários (só coisa fina, como maltodextrina). Em seguida entra o nescau pra substituir aquele afago do leite materno no café da manhã, no lanche da tarde ou antes de dormir. Na adolescência e vida adulta, dezenas de biscoitos, bebidas lácteas, iogurtes, chocolates, e até leite de aveia pra veganes! Na terceira idade, uma série de suplementos para garantir a dose de cálcio, proteína e afins. É isso. Do nascimento à velhice: a dona Nestlé quer impor hábitos e produtos em todas as fases de vida de um ser humano.
Mas assim como o tio Fabricio do Ifood, a multinacional suíça é insaciável. E despejou no mercado, na maior cara de pau, uma nova linha de produtos PRA BEBÊS: meu primeiro biscoito, meu primeiro salgadinho, minha primeira pipoquinha e afins.
Apesar de ser um dos focos do barraco nas redes da tia Prioli, a lista de ingredientes desses produtos não me interessa. Podia ter apenas milho de sementes ancestrais mexicanas cultivado com música clássica, colhido na lua cheia, sem veneno e carbono neutro, é claro.
Nenhum bebê, aos 8 meeeeeeeeeeeeeses, deveria ingerir qualquer produto oriundo de um pacote pronto pra consumo. Nenhuuuuuum! Segundo o Guia Alimentar para crianças menos de 2 anos (sim, existem 2 guias!), ninguém deve comer alimentos empacotados até o segundo ano de vida.
Tudo em relação à faixa etária que engloba a infância e a adolescência é mais sensível. É nesse período que se constrói o paladar, as preferências e os hábitos que a gente carrega pra sempre. Ao mesmo tempo, é quando somos mais vulneráveis ao marketing e a todo tipo de conteúdo persuasivo.
Ofertar um biscoito aos 8 meses é introduzir o hábito do biscoito como lanche, é normalizar o consumo de um produto que não faz o menor sentido na nossa cultura alimentar, e já é legitimado até pelas creches e escolas. Passados uns anos, como se explica pra criança que ela não deve comer trakinas de morango porque tem muito corante e açúcar?
[É a broa de milho, sequilhos de coco, mandiopan, etc, que contam a nossa história. Não têm nada a ver com biscoito mega industrializado]
Essa mesma linha de pensamento pode ser aplicada aos produtos com personagens infantis na embalagem. Não importa se é melancia ou gelatina. Comida é comida, gibi é gibi, brinquedo é brinquedo. A gente não pode confundir nossos pequenos. Mas se você ainda quer mais argumentos, tem um episódio inteirinho do Jornal do Veneno sobre isso.
Observação: não se culpe por comprar esse tipo de produto. A crítica aqui é toda voltada à perversidade da empresa (e do capitalismo, né), além da falta de uma legislação mais dura contra essas práticas.
Fechamos por hoje? Olha, se você seguiu firme até aqui, meus parabéns! hahaha
Me ajuda a divulgar essa news? E, se puder apoiar com dinheiros, seria um sonho. Acho que já passou da hora do Jornal do Veneno pagar um departamento jurídico, porque, né hahahaha.
Obrigada por caminhar junto comigo mesmo quando os assuntos são dureza.
Um beijo e até semana que vem,
Juliana.
Tá bem gostoso de ler, fica tranquila, vc não está só! Tem mais gente aqui sem conta no tico tico e que amaaaa o formato texto + imagem e não tem paciência pra vídeo. :D
Adorando esse novo formato! A arrogância do cosplay de Mark Zuckberg tupiniquim de achar que é mais fácil mudar o sistema alimentar de um país de séculos, com mais de 200 milhões de habitantes em 10 anos do que esse seu app morrer nesse mesmo tempo deveria ser estudada… Mas o que será que ele tem a dizer dos entregadores que ele explora, chamando de “empreendedores” para fazer arcar com os custos que deveriam ser da empresa, que tem jornadas de 14h por dia, 7 dias na semana e não chegam a ganhar um salário mínimo por mês, e se alimentam de pacotes de biscoito, que são mais baratos, porque nem direto a uma refeição tem por essa “maravilha” de app explorador?