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Faz quinze dias que um amigo de longe, que ainda não conhecia o meu filho, veio almoçar aqui em casa. É incrível acompanhar a reação de cada pessoa que a gente ama se deparando com um pedaço nosso avulso, mas esse ponto não vem ao caso agora.
O amigo em questão carrega a fama de exímio cozinheiro. Na faculdade, era o mestre do cachorro quente e sabia entregar um arroz soltinho, que não leva nem alho nem cebola. Não é todo dia que a gente encontra um indivíduo que performa masculinidade cozinhando um belo de um arroz no ponto com o devido espaço entre os grãos.
Nunca cogitou ser vegano, apesar de ter tido suas fases de simpatizante à redução das carnes. Nos meses de pandemia, quando passou a engolir menos bifes, lembro de ligar pra ele e perguntar o que que tava comendo. Tive como resposta uma risadinha seguida de “pão com presunto”.
Acontece que o consagrado tem chamado atenção pela alimentação bastante destoante do resto da nossa patota. Somos sete mulheres e três homens. Dez jornalistas e uma psicóloga. Apesar da amizade ter sido edificada à base de podrão, agora somos todos entusiastas de um brócolis na pizza. Até que o outsider entrou na academia, começou a correr, a ser confundido com personal trainer, a ansiar por novos gomos aparentes na barriga e retos femorais definidíssimos. Nas palavras dele mesmo, “ficar mais gostoso”.
Pra isso, nosso saradão quase não come em restaurantes, pesa porções de alimentos com atenção e sustenta uma dieta que impacta mais o aquecimento global do que toda a população de Bangladesh. Só no café da tarde são 6 fatias de pão com doce de leite, frango e requeijão light. Aliás, achei que já tinha entrado em desuso essa coisa de produto light.
Perguntei se não podia substituir o doce por pasta de amendoim, mas o lácteo oferece as calorias exatas pro objetivo a ser alcançado. Se somarmos todas as refeições, tem frango no almoço, frango no pré-treino e frango no pós-treino. A última refeição do dia varia entre batata inglesa assada com whey e pipoca sem óleo com whey + banana prata com whey. Tudo prescrito bonitinho por um nutricionista esportivo.
No dia da visita, fiz feijoada com inhame, berinjela defumada e coco tostado. Ele preparou uma farofa maravilhosa e crocante com sobras de pão. Também teve couve, arroz, vinagrete de manga e amêndoa de cacau caramelizada de sobremesa. Perguntei como tava se sentindo por ingerir uma refeição fora do planejado. Ele me tranquilizou que já tinha botado pra dentro “a proteína do almoço” antes de chegar na minha casa.
Os marombas costumam estar para o nutricionismo assim como o coach Pablo Marçal está para o empreendedorismo. Os dois exemplos mostram, inclusive, o quanto somos cooptados pelo sistema neoliberal, vistos como máquinas lucrativas a serviço do autoaperfeiçoamento infinito.
Meu amigo querido não é a primeira, nem a última pessoa próxima a entrar pra seita da comida com objetivo e ficar no limite de um transtorno alimentar. Tem que comer isso pra bater a meta daquilo. Tem que ficar gigante. Tem que secar pro carnaval. Tem que desinflamar pro intestino funcionar melhor. Mas se alguém perguntasse quem da minha turma entraria nessa onda, eu jamais diria o nome de alguém conhecido por ser insuportavelmente crítico, do contra e debochado.
Mais uma vez me veio um paralelo com o sequestro das pessoas pela extrema direita. Essa obsessão por desempenho na atividade física, que precisa do nutricionismo pra melhorar a performance, não seria também uma resposta a um desejo de pertencer e se maravilhar num mundo opressor, desigual, solitário e apocalíptico?
Do mesmo jeito que não adianta dizer pra minha vizinha que ela não vai virar jacaré se tomar vacina, falar pra minha avó que a cápsula de ora pro nobis não aumenta a imunidade, não adianta insistir com um maromba que ele consegue atingir as proteínas devidas comendo de forma intuitiva, sem fazer contas ou virar sócio da Seara.
Eu podia apelar pros 78 conteúdos que já criei destrinchando as razões políticas por trás da proteinamania. Podia mandar o episódio do podcast Prato Cheio sobre o mesmo assunto. Podia recomendar o livro Comer o que, da editora Alaúde, em que o médico David Katz coloca os pingos nos is nos modismos alimentares que parecem ter respaldo da ciência.
“Existem evidências de que a ingestão de grandes quantidades de proteína pode fazer diferença para os fisiculturistas. Mas não faz diferença pra as demais pessoas. Se você quer músculos, malhe. A despeito da crença popular, mais proteína não torna ninguém maior ou mais forte; a atividade física sim. A proteína extra é útil apenas no fisiculturismo e não é saudável.
(página 152)
Só que os argumentos racionais com fatos e dados não parecem fazer efeito. Pelo contrário, acabam nos dando uma aura de arrogância, de superioridade e, muitas vezes, de elitismo. A narrativa da creatina e afins já tá muito bem amarrada pelos colegas da Smart Fit, por médicos e nutricionistas com milhões de seguidores, por feiras de produtos ditos saudáveis, pelas prateleiras do supermercado, por influencers de todos os nichos possíveis.
Falar que é possível fazer esportes sem precisar suplementar ou mudar radicalmente a alimentação virou o novo “mais presídios e mais polícia não vão reduzir as violências”. As pessoas te ouvem absurdadas, como se você fosse um alienígena por fora das últimas notícias terráqueas.
Não tenho saídas pra sugerir nesse sentido. Minha única aposta é que não dá pra seguir só recomendando que as pessoas leiam as 152 páginas do Guia Alimentar para a População Brasileira.
Quando se refere ao enfrentamento à extrema direita, o pesquisador italiano Paolo Demuru sugere que é preciso instigar o sonho pra vencer a desinformação. A gente tem que juntar as pontas entre o sonho e concreto com um discurso alegre, que encanta, que desperta sentimentos bons, sem liçãozinha de moral. Concordo. Mas como que a gente estimula a imaginação diante de um marketing tão pesado e sem a menor regulamentação das redes sociais?
Por ora, consegui que o amigo cogitasse procurar outro profissional de saúde e meu analista me mandou ler O mal estar na civilização pro próximo encontro.
🔸Há poucos meses, uma prima e outro amigo estavam lendo Cem anos de solidão junto comigo sem combinar. Neste outubro, comentei com os dois que comecei Ainda estou aqui, livro do Marcelo Rubens Paiva que inspirou o filme do momento. A estreia nos cinemas é agora no dia 7 de novembro, inclusive. De novo, nós três sincronizamos a leitura de olho no lançamento da versão audiovisual. Tô me segurando pra ir devagar e degustar cada frase. Mas tá difícil. Já adianto que é desses livros que enfeitiça, que descompensa, de fazer a gente esquecer das necessidades fisiológicas e querer guardar vários trechos numa caixinha:
“A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre outra, mas ao lado. A memória recente não é resgatada antes da milésima. Elas se embaralharam.”
🔸Também tô apegada na nova novela das sete. Não gosto de emendar uma na outra porque novela é um compromisso longo, mas o elenco e a trilha me arrebataram. O melhor de tudo: ao contrário da trama das nove, essa não tem comercial do agro é pop nos intervalos hahahaha. Amo que tudo se desenrola em torno de uma empresa de ônibus, a Viação Formosa. Várias cenas se passam na catraca. Amo que o casal de protagonistas mantém uma relação leve e saudável com diálogos que não subestimam a nossa inteligência. Também não rolam grandes acontecimentos. Então dá pra assistir duas vezes por semana de boa sem perder uma pista de um assassinato. Uma delicinha no meio da rotina pra acompanhar a gente no preparo da janta.
🔸Ainda no tópico audiovisual, entrou pro catálogo do Globoplay um documentário que ajudei a produzir sobre o impacto da Copa do Mundo no Brasil: Os donos da casa. Hospedei a Carla e o Miguel, a diretora e o cinegrafista, na minha ex-casa carioca, fomos juntos no Morro do Turano gravar com um dos quatro personagens principais, apresentei pra eles a versão da cidade que me destruía e me maravilhava. Também acompanhei a trabalheira que foi conseguir o financiamento pro projeto e depois pra inscrevê-lo nos festivais. Enfim, vi muita gente zoando as Olimpíadas de Paris, dizendo que o Rio fez muito melhor. Mas acho que a gente ainda não assimilou bem o tamanho das contradições que um evento desse tamanho proporciona. Pra mim, o saldo permanece muito negativo.
🔸Minha mais nova obsessão no mundinho newsletter é a Desinteressante, escrita pelo jornalista e ex-pobre Marcos Candido. Achei que a edição sobre o entusiasmo do pai dele com Sandy e Júnior jamais seria superada, mas a desse mês também tá um primor. Não tem como parar de ler, como não se embasbacar com o perfeito encadeamento de ideias e palavras.
🎧 Sigo matutando possibilidades de a gente interagir e criar laços para além do grupinho do Telegram. Aí me veio uma ideia aqui. E se cada edição das Colheradas render uma playlist colaborativa? Eu sugiro um tema relacionado a algum bafo do mês, adiciono uma música que faça algum sentido ali e cada pessoa pode deixar a sua marca também. Bora? A de outubro não podia se referir a outra coisa:
🛍️ CUPONS DE DESCONTO
🔸Kalapa Chocolate: COMIDASAUDAVEL10 (ganho 10% nas vendas).
🔸Caulí Beleza Natural: JUGOMES.
🔸Urbann Flowers: comidasaudavel20.
Observação: vamo consumir com moderação porque já basta a black friday chegando.
É isso?
Obrigada por me aturar por mais um mês e ainda pagar por isso.
Vem aí, na próxima edição, as sugestões de comes e bebes em clima natalino. Eu amo que sempre trago mil ideias e depois só consigo fazer aperitivos e sagu de fruta hahahaha.
Um beijo sabor shake proteico com aroma de pistache,
Juliana.
Esse lance de as pessoas ficarem obcecadas com igrejas, com o corpo ou com qualquer coisa me faz pensar na nossa necessidade de ruptura, de nos identificarmos com algo diferente do que consideramos comum. Na minha rotina, tenho tentado conversar sobre esse processo de identificação a fim de fortalecer/criar vínculos. Além disso tem a questão do desejo pelo extraordinário diante da banalidade do cotidiano.