Olá, venener. Passou bem a semana? Enjoou de chocolate? Fez tuas atividades físicas? Bebeu teu shake proteico com matchá e sal quântico pra desinflamar? hahaha Tô comendo uma pamonha salgada enquanto escrevo essa edição e tomando um mate geladão. Na verdade, acabei de me dar conta de que todos os lanches da tarde que comi nessa semana foram à base de milho. Na segunda foi espiga cozida, na terça, canjica, quarta, pipoca, quinta, canjica de novo e agora a pamonha hahaha, mas não consegui terminar porque os assuntos tão super indigestos. Minha sorte é que tem dois felinos abusados disputando espaço aqui na mesa e me fazendo companhia. Agora vou parar de enrolar porque você tem um tijolão pela frente.
Boa leitura! Não esquece de comentar lá embaixo, não nos stories do Instagram, porque do contrário apenas eu serei presenteada com as tuas colocações pertinentes.
🌎GIRO NOTÍCIAS
O golpe que mudou até o que a gente come completa 60 anos
Quando o presidente João Goulart prometia a mais de 200 mil pessoas que seu governo faria a reforma agrária, durante um discurso na Central do Brasil (RJ), no dia 13 de março de 1964, minha avó carregava meu pai na barriga, meu avô transportava madeira de caminhão, enquanto do lado materno Dona Zica já cuidava de 7 filhos e o marido vendia peixes na sua quitanda, no porão da casa.
No momento em que o general Olímpio Mourão chegou à cidade da Estação Primeira de Mangueira com seus tanques, no dia 1º abril do mesmo ano, eu não tinha um único familiar na universidade, nem em partidos políticos, tampouco respirando ideias comunistas.
No dia seguinte, quando o golpe dos milico recebeu apoio do congresso e foi oficializado, televisão ainda era coisa rara em Rio do Sul, interior de Santa Catarina. Veículos como Globo, Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Estadão, todos defensores dos golpistas, mal chegavam à região. Só restava o rádio pra acompanhar o barulho dos helicópteros e a notícia de que a reforma mais urgente desse país ficaria distante.
Eu cresci com a ideia de que a ditadura militar brasileira impactou apenas intelectuais, políticos, militantes, jornalistas e amigos do Caetano, gente das metrópoles sem conexões comigo. O número (controverso!) de 434 pessoas assassinadas, mais de 20 mil torturadas e 5 mil “expulsas” sempre me pareceu horrendo, indefensável, uma mancha sangrenta na nossa história. Mas não teve aula de história que me permitisse perceber as cicatrizes mais profundas do regime.
Essa edição é, sobretudo, um encontro comigo mesma. Com uma história que agora parece mais minha do que nunca e de todo mundo que respira, trabalha, planta, vive e come em terras brasileiras.
Eu comecei a cavoucar esses 21 anos de horror em Santiago, no Chile. Logo na entrada do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, que visitei com minha mãe e irmã, tinha uma linha do tempo das ditaduras latino-americanas: quando cada uma começou, terminou e finalizou a sua Comissão da Verdade, o órgão oficial que investiga os crimes cometidos por agentes do estado nesse período. Pro nosso constrangimento, somos o único país ali cuja comissão não teve caráter punitivo nem encerrou devidamente os trabalhos.
Nas paredes do mesmo museu, me deparei com inúmeros indícios que o desgraçado do Pinochet trucidou milhares de pessoas que não eram necessariamente barbudas e universitárias. Foi aí que me dei conta que os regimes militares na América do Sul seguiram um padrão: foram financiados pelos Estados Unidos, sustentados por grandes empresas e ruralistas, e apagaram milhares de camponeses e povos tradicionais.
No relatório final da nossa Comissão Nacional da Verdade (CNV), consta que tivemos 8.350 indígenas e 41 camponeses mortos ou desaparecidos pela turma do general Castello Branco. No entanto, um estudo da Universidade de Brasília contesta o número de trabalhadores rurais. Gilney Viana, ex-preso político e autor da pesquisa, aponta que foram 1.654 pessoas assassinadas pelo regime. O cálculo incluiu ainda os anos Sarney, entendido pelo pesquisador como um governo civil-militar que herdou parte da política repressiva da ditadura.
“Todos esses crimes estavam ligados à resistência camponesa, quer dizer, era o pessoal lutando pela terra. Ou por direitos trabalhistas, mas a maioria é terra. O latifúndio, o agronegócio, não lhes dava legitimidade da luta. Eles achavam que era subversão, o trabalhador ‘estava badernando, atrapalhando o trabalho’, coisas desse tipo. E havia três formas de se fazer. Um, pela própria polícia privada. Ou jagunços. Ou pistoleiros. Tinham empresas e latifundiários que não detinham ainda uma empresa deles, quer dizer, de repressão. Depois, sofisticaram. Tinha gente que alugava uma empresa, fantasiada de segurança, de assistência, que era de repressão. E, terceiro, tinha aquele que contratava o avulso. Era muito comum nas décadas de 70 e 80. Eu vi isso em Mato Grosso. A Praça Central de Cuiabá, você se lembra ali, aquela da igreja Matriz? Ali, mesmo em 1980, você contratava pistoleiros que ficavam sentados ali. E sabia-se o preço de cada um”.
(Leia aqui a entrevista completa com o pesquisador)
Além de atentar contra as ligas camponesas, os levantes dos sem-terra e indígenas, o regime militar focou em outra estratégia pra evitar que o Brasil virasse “uma nova Cuba” e pra nos enfiar goela abaixo o novo modelo de agricultura dos Estados Unidos: transformar as faculdades de agronomia.
Em sua tese de doutorado pela Unicamp, Rodrigo Sarruge Molina relevou que os milico promoveram uma faxina ideológica na Escola de Agricultura da USP de Piracicaba. Alunos e professores com “ideais revolucionários” foram torturados e assassinados pelo DOPs, enquanto a faculdade assumia o papel de catalisadora da modernização do campo brasileiro.
Dezenas de pesquisadores gringos desembarcaram em Piracicaba pra incentivar estudos e práticas de ensino que beneficiassem a grande agroindústria, especialmente na área de mutação genética de sementes e de animais. Tudo bancado com dinheiro público. Aliás, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) nasceu exatamente durante o regime, com o objetivo de impulsionar a ocupação das terras com tecnologias agrícolas. Até que existem pesquisadores maravilhosos lá dentro e vários estudos corajosos, mas lembremos que esta mesma Embrapa foi quem acabou de desenvolver o feijão carioca transgênico.
Em resumo, o nosso estimado agronegócio não seria uma unha do que é hoje sem os anos de chumbo. Quer dizer, grande parte dos problemas estruturais brasileiros foram piorados nesses 21 anos de ditadura, né? O que inclui o nosso sistema alimentar desigual e herdeiro das palhaçadas estadunidenses, além dessa vocação de lixão químico do mundo. Vamos a outros exemplos mais concretos:
🤡 Parece óbvio, mas essa gente que gosta de acampar em frente a quartel costuma gritar que os militares realizaram um “milagre econômico” porque não tiveram acesso aos indicadores socioeconômicos do período. O governo dos milico proibiu a imprensa de usar a palavra “fome” e de exibir imagens de pessoas vivendo na miséria. De 1979 a 1983 os estados que compreendem o sertão nordestino enfrentaram uma estiagem histórica, mas o país não soube que pelo menos 700 mil pessoas morreram por falta de comida na região.
🤡 Foi o governo militar que investiu na criação de uma indústria química nacional pra produzir agrotóxicos. Em 1975 criaram o maravilhoso Programa Nacional de Defensivos Agrícolas. Isso foi possível porque todas as regras referentes a agrotóxicos até 1989 eram editadas por meio de portarias pelo poder executivo. O presidente podia enfiar o veneno que quisesse no estômago das pessoas!!!! Mas o congresso também não faria muito diferente, né? Rindo de nervoso ao lembrar que pouca coisa mudou.
🤡 A ideia de desenvolvimento e progresso já vinha forte da Era Vargas e dos tempos do Juscelino. Mas nada se compara às obras megalomaníacas de infraestrutura e o projeto de colonização da Amazônia executados pelos vermes. Surpreendendo ninguém, 70% do desmatamento da Amazônia se concentra entre 50 quilômetros para cada lado das rodovias abertas pelos milicos. Ou seja, apesar de não ter criado os problemas ambientais, a ditadura os tornou muuuuuuuuuito mais intensos.
🤡 Os anos entre 1964 e 1985 também foram marcados por incentivos fiscais e políticas voltadas a expandir a pecuária, especialmente na região Norte. O governo militar chegou a promover um sistema de assentamento que distribuía terras para grandes, médios e pequenos proprietários. Foi nesse período que diversos sulistas começaram a derrubar árvore pra criar gado na Amazônia. E nunca mais saíram.
🤡 Essa visão predatória da natureza, de que tudo pode virar recurso a ser explorado pra desenvolver a economia, já vem de muitos carnavais. Mas foram os parças do Médici que colocaram o estado a seu favor de forma escancarada. Resultado: trata-se de um dano praticamente irreparável e que contaminou até parte da galera da esquerda, esse povinho aí que não tem vergonha de defender extração de petróleo na foz do rio Amazonas em 2024!!!!
Mais um legado dos militares
Ferrovia pra levar grãos do Mato Grosso ao Pará pode impactar 16 povos indígenas
Em 2014, durante a gestão da saudadora de mandioca, um grupo seleto de empresas fofas se uniu pra entregar um projeto de ferrovia à amiga da Katia Abreu. Uma coisa bem simples de se colocar em prática, venener, e crucial pro povo brasileiro. Uns trilhozinhos ligando Sinop, no Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará, que facilitaria o escoamento de grãos transgênicos e reduziria o valor do frete em R$50 por tonelada.
Sim, os executivos das maiores compradoras de soja do país, como Bunge, Cargill, Amaggi e Dreyfus querem aumentar seus lucros passando por cima de 16 povos indígenas, milhares de quilômetros de floresta e 17 unidades de conservação.
Dilmãe deu uma enrolada, mas seu vice decorativo e usurpador do trono recebeu a empreitada com simpatia. Além de ser mais um governo golpista apoiado pelo agronegócio, o próprio ministro da agricultura do Temer era o tio Blairo Maggi, herdeiro de uma das empresas que idealizou a obra!
Mas só no governo da tartaruga derretida, que agora deu pra brincar de esconde-esconde na embaixada da Hungria, é que a coisa começou a sair do papel. O estudo de impacto ambiental encomendado pelo abençoado, inclusive, é digno de crise de riso.
Como se não bastasse, a obra pode passar por cidades que já se destacam pelas queimadas, como Novo Progresso (PA), onde o ladrão de joias teve sua maior votação proporcional de toda região amazônica.
No momento, o projeto da Ferrogrão segue na fase de estudos ainda, mas com uma parte travada no STF. Pra abrir a estrada seria necessário reduzir a área do Parque Nacional do Jamanxim, como Temer tentou por meio de uma medida provisória, barrada por Alexandre de Moraes a partir de uma ação do PSOL.
A gente sabe que o Lula pode fazer a sonsa, mas não deve sucumbir aos pedidos do cacique Raoni e de seus ministros sensatos pra vetar a Ferrogrão. Pra não queimar seu filme, o esposo da Janja talvez arraste a situação até passar a COP 30, porque vai acontecer exatamente no Pará, no ano que vem.
Enquanto isso, os ministérios dos Povos Indígenas e dos Transportes chegaram ao consenso de quantas terras indígenas precisam ser consultadas antes do projeto ser aprovado, 3 delas são de povos isolados. E as audiências com representantes devem rolar nos próximos meses pra discutir possíveis compensações. Fui espiar as imagens dos protestos que rolaram nos últimos anos contra a ferrovia e fiquei arrasada de encontrar cartazes de indígenas salientando que não são contra o desenvolvimento, só reivindicam o direito de, pelo menos, serem ouvidos.
📝 Pra aprofundar: chega aos cinemas no mês que vem o filme Terra Revolta, sobre o moço responsável pela reforma agrária no governo João Goulart, aquela que ficou no campo dos sonhos.
🪟Pra ver por outro ângulo: documentário Paredes Pintadas, sobre quatro mulheres que lutaram contra o regime militar e que tive o prazer de contribuir na pesquisa de arquivo.
🍃SEGURA O CÉU!
[Este é o novo quadro do Jornal do Veneno, que vai trazer iniciativas ecológicas e interessantes para macetar o apocalipse. O nome do quadro é inspirado no livro “A queda do céu”, escrito pelo antropólogo Bruce Albert e pela liderança yanomami Davi Kopenawa. Os yanomami entendem que a ganância capitalista dos brancos vai derrubar o céu, ou seja, destruir a vida humana na Terra.]
Eu adoraria encerrar com uma lista de ofensivas pra reparar o legado catastrófico dos militares, mas tenhamos os pés no chão, né? 2024! A gente já sabe que o Partido Novo não tem nada de novo, que canudo de bambu não vai salvar as tartarugas, que somos nós que estamos à venda quando a rede social é de graça.
Então vamo encarar que muitos desses danos serão veias abertas da América Latina pra sempre. Alguns outros podem ser estancados começando da base, a raiz de tudo: a distribuição de terras. As brigas pelo direito a um pedacinho de chão pra todo mundo, puxadas por ligas camponesas, por movimentos como o MST, são fundamentais pra história não se repetir.
Do mesmo jeito que todas as ações possíveis de investigação, responsabilização e memória precisam ser implementadas. É urgente que o Brasil tenha um museu dos direitos humanos, como o Chile tem, que continue lembrando das vítimas, desenterrando documentos e arquivos da ditadura.
Enquanto isso, a gente também pode apoiar, ler e espalhar as ideias de pessoas incríveis que puxam a segurada do céu em vários frentes. No Brasil, ainda bem que é difícil escolher uma só hahahaha. A última liderança que me arrebatou nesse sentido eu já citei 900 vezes no Jornal do Veneno e no Instagram do Comida: o querido Nêgo Bispo, que nos deixou de forma precoce. Não tenho outra palavra pra definir o livro A terra dá, a terra quer que não seja AVASSALADOR. Quero selecionar umas frases pra escrever aqui nas paredes de casa.
Pra ficar menos repetitiva, vou lembrar de alguém que tá mega distante da gente, mas super alinhada nas batalhas: Vandana Shiva. No seu novo livro, que a editora Boitempo acaba de lançar, a ativista indiana denuncia, dando muitos nomes aos bois, os responsáveis pela destruição do planeta, e ainda faz um poderoso testemunho de resistência a essas violências. Não é uma leitura fácil, mas não deixa de ser inspiradora. Pra começar, recomendo esse bate papo que a Boitempo organizou pra promover o livro. Geni Núñez observou que a Vandana luta pela terra e COM a terra. Achei tão bonito!
Não dá pra esperar um buquê de flores de um negócio que chama Jornal do VENENO, mas hoje pesou, hein? hehehe
De qualquer forma, encerro sentindo certo alívio por não estar sozinha no meio dessa avalanche de informações tenebrosas. Obrigada pela parceria e por não desistir deste jornal independente!
Te encontro de novo na semana que vem? Só não posso garantir que o Brasil vai aliviar hahahaha.
Um beijo,
Juliana.
Mesmo atrasadíssiiiiiima nas leituras dos últimos Jornais não posso deixar de bater meu ponto nos comentários! Inacreditável e inaceitável não termos um museu que materialize as memórias da época trevosa que foi a ditadura no Brasil. Também estive no museu de direitos humanos em Santiago e me entristeceu muito saber que o poder público simplesmente ignora esse terrível período da nossa história. Foi uma leitura dolorosa, como sempre é quando me deparo com escritos sobre a ditadura, mas muito construtiva por levantar o ponto de vista da indústria de alimentos, agrotóxicos e extermínio dos povos originários e camponeses nesse período. Terminar com Vandana Shiva e Nêgo Bispo foi demais pro meu coração! Mais uma vez agradeço pela sua escrita!
Demorei pra ler, tô atualizando tudo de uma vez hoje a dessa semana e essa, da semana passada, mas essa edição é atemporal!
Eu lembro há alguns anos atrás quando começou a se falar de comissão da verdade, quando se falava mais da ditadura e seus impactos até nos filmes e séries... Rolava uma esperança de que haveria um trabalho grande de memória né? Acho bem amargo esse lugar onde estamos, onde parece que tudo retrocedeu bastante e vamos levando umas pás de cal em cima do trabalho de resgates e lembranças...
Nessas horas só rompendo o positivismo, vou me apegando ao tempo cíclico e aplaudindo esses trabalhos de abrir frestinhas como é essa edição 💜