O que é comida saudável, afinal? #95
Uma década do Guia Alimentar para a População Brasileira, os ataques ao documento e a falácia dos "ultraprocessados nutritivos"
Olá, venener! Bom sábado pra você. O seu time é o de quem madrugou pra acompanhar a apuração na maior democracia do mundo ou não foi pra tanto? Risos. Eu já não durmo devido às demandas da maternidade, então dei umas espiadas e fiquei embasbacada com o 7x1. Agora já ando meio saturada de tanta análise, tanto pitaco, tanto fatalismo. Não é exaustivo e intenso viver grandes acontecimentos pelas redes sociais? Minha deusa!
Aqui no Brasil a gente nem precisa do Trump pra tornar o ar irrespirável, o calor extenuante e a comida envenenada. Já temos a nosso próprio histórico e a nossa própria galera tóxica. Mesmo assim, não dá pra evitar que o país do hambúrguer teve e ainda tem um dedinho enooooorme nos nossos problemas estruturais, especialmente nos alimentícios.
Mas esta edição tem um sabor diferente, um clima de comemoração. Na última terça, 5 de novembro, o Guia Alimentar para a População Brasileira completou dez anos. Pode parecer que estamos falando apenas de um documentozinho solitário e perdido no meio de tanta bobagem sobre alimentação na internet. Até porque nossos pacotinhos saborizados artificialmente continuam sem regulação, permanecem de fora da nova reforma tributária (só entraram os refrigerantes, lembra?) e educação alimentar nas escolas ainda não virou política pública. Não dá pra negar nada disso, claro.
No entanto, justamente pelo tamanho das nossas problemáticas é que o Guia merece ser reverenciado e festejado. Não é à toa que certos setores da economia insistem em atacá-lo e em pressionar pela sua revisão.
Este Jornal do Veneno é um especial pra mandar no grupo da família, da academia, da vizinhança. Pra todo mundo que come, que sofre o bombardeiro de marketing da indústria alimentícia todos os dias e se confunde quando o assunto é alimentação saudável.
Agora pegue a sua cajuína aí na geladeira pra gente brindar ou um suquinho de laranja orgânica, um cafezinho de pequenos produtores, um chazinho com ervas do quintal e boa leitura! :)
Esta edição conta com o apoio do Instituto de Defesa de Consumidores, o Idec. Já estivemos juntos no episódio sobre publicidade infantil do finado podcast, em alguns conteúdos sobre análise de rótulos no Instagram e no blog, além do Observatório de Publicidade de Alimentos, onde participei dando sugestões e testando a plataforma. Neste mês, o instituto lançou a campanha: “Feche o pacote e abra o Guia”, com o objetivo de divulgar as principais recomendações do documento e reforçar os riscos associados ao consumo de alimentos ultraprocessados.
🎉RITMO, É RITMO DE FESTA
Publicação do Guia Alimentar há dez anos e a consolidação do conceito de “ultraprocessado” estão entre as maiores derrotas da indústria alimentícia
Quando era criança, eu achava estranhíssima a entrada de um senhor na casa da minha avó sem tocar a campainha ou bater palmas no portão. Ele deixava uma garrafa de vidro com leite na porta da cozinha, uns sacos de feijão, às vezes farinha e verduras. Era um vizinho próximo que plantava e criava vacas, depois distribuía tudo na cidade e cobrava a fatura dos clientes no fim do mês. Quando adoeceu, seu filho continuou o serviço por um tempo, mas o mundo já havia se transformado o suficiente pra modernizar os hábitos da vizinhança, que agora se gabava da facilidade de comprar tudo no mesmo lugar, no supermercado.
Apesar das mudanças, os idosos da família ainda sabem que arroz e feijão precisam estar à mesa todos os dias, que pão feito em casa supera qualquer pacote industrializado e que não se come sobremesa todos os dias. Mas da geração dos meus pais em diante, se alimentar virou um desafio, um estresse, um território tomado por incertezas e disputas.
Eu já cresci tirando o miolo do pão pra reduzir as calorias. Tomando leite desnatado com achocolato light de café da manhã. Preferindo pizza de atum porque tem menos gordura que calabresa. Com medo de fritura. Sentindo culpa por comer sorvete. Confusa se era permitido comer 2 ovos por dia ou se morreria segundos depois pelo aumento do colesterol. Sem saber preparar uma simples farofa até a idade adulta. Sem a menor ideia de quem plantou e de onde veio aquele tomate do meu sanduíche.
Não era só na minha. As casas das amigas do colégio não tinham feijão todos os dias também, mas se preparava nuggets com frequência. As mães trabalhavam fora e a gente lanchava uns pacotes de biscoito de embalagem colorida. Quem tava com dor de barriga comia bolacha de sal ou gelatina. Nas bancas de jornal, nos consultórios de dentista e salões de beleza, proliferavam revistas exaltando dietas pra secar barriga, propriedades de alimentos específicos e recomendações terroristas, do tipo: “pare de comer carboidrato à noite”.
No recreio da escola, a gente comprava misto quente e refresco. Nas aulas de ciências, estudava que comer bem significava seguir uma pirâmide alimentar. Na base, constavam o arroz, pães, batatas, macarrão. Acima, os vegetais e frutas. Ovos, lácteos, feijões e carnes vinham em seguida. E, no topo, doces, óleos e gorduras. O esquema talvez fizesse sentido nos tempos em que se comprava comida em quitandas, de sítios vizinhos, quando o requeijão não levava sequestrante e quando macarrão se preparava no domingo, com a família reunida em volta da bancada suja de farinha.
Nossa relação com a comida, o currículo das faculdades de Nutrição, as informações sobre alimentação saudável que circulavam na imprensa. Tudo foi completamente moldado pela conjuntura socioeconômica do pós segunda guerra: de exaltação ao progresso, ao desenvolvimento, investida pesada do marketing na televisão e deslumbre com a praticidade proporcionada pela industrialização.
A gente não lia lista de ingredientes, só dava uma espiada no preço, na marca e nas informações da parte frontal da embalagem, que sempre destacava um benefício nutricional. Confiava-se muito nas grandes marcas gringas que não paravam de despejar novos produtos nas prateleiras, sempre repaginados pelas tendências.
Mas além de garantir lucros exorbitantes pra suas respectivas fabricantes, esses produtos fizeram disparar os casos de doenças crônicas não transmissíveis no país, afastaram as pessoas de suas tradições culinárias regionais, enriquecerem grandes redes de supermercados, reduziram a nossa autonomia e passaram a fomentar uma produção global de commodities agrícolas baseada em desmatamento, agrotóxicos e concentração de terras.
Diante desse cenário, um grupo de cientistas do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo, o Nupens, encabeçado pelo professor Carlos Monteiro, começou a se mexer. Os estudos mais recentes indicavam que passava da hora de superar a pirâmide de alimentos. Os indicadores de saúde chamavam atenção pra necessidade de um conjunto de normas que guiasse os profissionais de saúde, as políticas públicas e as escolhas da população.
Em 2006, o Ministério da Saúde lançou a primeira versão do Guia Alimentar para a População Brasileira, mas ainda dirigido apenas aos profissionais de saúde. Após um processo extenso de atualização, revisão, consulta pública e pressão popular, a versão oficial foi publicada oito anos depois em linguagem direta e acessível, dirigida a todas as pessoas.
As ofensivas
A publicação do Guia em novembro de 2014 representou a primeira derrota das grandes empresas. Em fevereiro daquele ano, quando o ministro Arthur Chioro recém assumia o Ministério da Saúde no governo Dilma, o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) na época, Edmundo Klotz, o abordou em um evento. O moço apenas comunicou que a indústria pedia para que o documento não fosse publicado. Não deu certo.
A pressão nunca cessou, mas tomou outra proporção na gestão de Jair Bolsonaro. Em 2019, o novo presidente da associação que representa Nestlé, Coca e amigas, João Dornellas, se empenhou em pedir a revisão do Guia Alimentar. A principal mudança sugerida abordava o capítulo 2 do documento: aquele que define o conceito de alimento ultraprocessado.
“O Guia, em si, tem muita coisa boa, mas exclusivamente o capítulo que fala da escolha dos alimentos passa longe da ciência e da tecnologia. E, aí, nós precisamos nos comunicar melhor com o nosso consumidor, com os nossos entes governamentais, inclusive, para tentar mudar essa ideia”.
(Declaração de Dornellas no dia 26 de junho de 2019, durante uma feira de tecnologia em São Paulo)
A indústria não se conforma em ver seus produtos criativos, fáceis de preparar, amplamente divulgados em campanhas inovadoras, que explodem na boca, cheio de vitaminas e nutrientes adicionados, serem associados a um termo de cunho negativo e a malefícios incontestáveis à saúde. Afinal, o pioneirismo do Guia Alimentar se dá pela classificação dos alimentos por grau de processamento, onde entra a dica de ouro: evitar alimentos submetidos a múltiplos processos industriais, como a fragmentação das substâncias (por exemplo, isolar proteínas) e a modificações químicas. Esse grupo recebeu um nome inédito: ultraprocessados.
Um ano depois, a pressão da indústria ganhou uma grande aliada: a bancada ruralista, presente em peso no Ministério da Pecuária, Agricultura e Abastecimento (MAPA). A ministra da pasta na época, tia Tetê Cristina, agora senadora, publicou uma nota técnica assinada pelo seu chefe de gabinete que solicitava uma revisão do Guia ao Ministério da Saúde, comandado por Eduardo Pazuello.
A ofensiva da ministra pode ter sido inspirada no modelo de um país bastante atrasado nas diretrizes alimentares. Nos Estados Unidos, é o departamento de agricultura quem define as orientações sobre alimentação saudável.
A nota de Dona Tereza possui um tom agressivo e merece uma salva de palmas pela ousadia. A crítica se volta, mais uma vez, ao conceito de ultraprocessado. O melhor de tudo é que seus autores se basearam em artigos cheios de conflitos de interesses pra defender sua tese, como mostrou essa reportagem do Joio e o Trigo. Um deles recebeu financiamento de uma organização que tem a Coca Cola como patrocinadora.
Em que pese a necessidade de uma ampla revisão, a fim de melhor classificar o Guia Alimentar brasileiro entre os demais no planeta (atualmente o Guia brasileiro é considerado um dos piores), a recomendação mais forte nesse momento é a imediata retirada das menções a classificação NOVA no atual guia alimentar e das menções equivocadas, preconceituosas e pseudocientíficas sobre os produtos de origem animal.
(diz a Nota Técnica nº 42/2020)
Apesar da gestão negacionista do Ministério da Saúde, a pressão do outro lado fez efeito. Diversas organizações, cozinheiros, ativistas e profissionais de saúde se juntaram em defesa do documento. O Guia Alimentar para a População Brasileira também já vinha sendo respaldado por diversos órgãos e governos estrangeiros. França, Uruguai, Malásia e México, por exemplo, são alguns dos países que lançaram seus guias baseados no nosso. Ou seja, nova derrota da indústria e da bancada do boi. O documento público segue firme e sem um único capítulo subtraído.
Inovador e afrontoso
O sucesso do conjunto de diretrizes Brasil afora e o nível de incômodo que causa em grandes setores da economia não é à toa. São recomendações inéditas nas revistas científicas, nas premissas governamentais e que convidam a gente a pensar a alimentação de um ponto de vista mais abrangente, sem separar da política.
O Guia se sustenta na chamada classificação NOVA. Em vez de dividir os alimentos em carboidratos, proteínas e gorduras, o documento separa as opções disponíveis por grau de processamento. Ou seja, uma batata doce e um pão industrializado com uma lista extensa de ingredientes não estão mais no mesmo grupo, já que são alimentos totalmente distintos. Não era mais vantajoso pras grandes empresas quando ambos eram considerados apenas fontes de carboidrato?
🫘Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles mais naturais, que passaram por transformações que não alteram suas características, como o milho que vira fubá, o grão de café que vira o pó, o feijão, a rúcula, o tomate.
🔥Ingredientes culinários: substâncias extraídas de alimentos in natura, como azeite, açúcar, sal, óleo de girassol, utilizadas pra temperar a comida.
🍞Alimentos processados: passaram por ações industriais mais simples, como adição de sal e açúcar, fermentação, salmoura.
🍨Alimentos ultraprocessados: foram submetidos a diversos processos industriais, onde receberam substâncias e aditivos químicos. Devem ser evitados, tendo em vista que um padrão de consumo baseado nesses consagrados está associado 32 complicações à saúde, como doenças cardiovasculares, câncer e depressão.
Outro ponto importantíssimo preconizado pelo Guia é a perspectiva de que comer não se resume a ingerir alimentos. Não faz sentido destacar os benefícios do brócolis sozinho, já que um padrão alimentar saudável requer variedade de vegetais e a planta não se adapta bem em todos os biomas, não dá o ano inteiro.
A gente precisa levar em conta todo o sistema agroalimentar: de que forma os insumos são plantados, transportados, armazenados e distribuídos. Quem preparou aquele alimento, de que forma, em que ambiente ele vai ser consumido. Aquele prato faz sentido naquela região? Ele conta uma história? Contém ingredientes sazonais?
Também destaco a parte sobre sustentabilidade, onde consta a recomendação de reduzir o consumo de ingredientes de origem animal e priorizar os alimentos orgânicos ou agroecológicos. Parece algo esperado em tempos de emergência climática, recordes de queimadas e altas temperaturas, mas pouquíssimos países tiveram essa coragem:
Sistemas intensivos de produção animal consomem grandes quantidades de rações fabricadas com ingredientes fornecidos por monoculturas de soja e de milho. Essas monoculturas, por sua vez, dependem de agrotóxicos e do uso intenso de fertilizantes químicos, condições que acarretam riscos ao meio ambiente, seja por contaminação das fontes de água, seja pela degradação da qualidade do solo e aumento da resistência de pragas, seja ainda pelo comprometimento da biodiversidade. O uso intenso de água e o emprego de sementes geneticamente modificadas (transgênicas), comuns às monoculturas de soja e de milho, mas não restritos a elas, são igualmente motivo de preocupações ambientais.
(Página 32 do Guia Alimentação para a População Brasileira)
Em resumo, as recomendações gerais pros profissionais de saúde e pra população como um todo são essas abaixo. Perceba que é tudo muito simples, não inclui terrorismo com um pedaço de bolo, nem contar gramas de proteína, nem priorizar alimentos sem glúten, muito menos a necessidade de fazer detox ou se entupir de suplementos da moda:
AS 10 DICAS DO GUIA RESUMIDAS:
1. Faça dos alimentos in natura ou minimamente processados a base da alimentação;
2. Utilize óleos, gorduras, sal e açúcar em pequenas quantidades;
3. Limite o consumo de processados;
4. Evite o consumo de ultraprocessados;
5. Coma com regularidade e atenção, em ambientes apropriados, sempre que possível, com companhia;
6. Faça compras em locais que ofertem variedades de alimentos in natura ou minimamente processados;
7. Desenvolva, exercite e partilhe habilidades culinárias;
8. Planeje o uso do tempo para dar à alimentação o espaço que ela merece;
9. Quando estiver fora de casa, dê preferência a locais que servem refeições feitas na hora;
10. Seja crítico quanto a informações, orientações e mensagens sobre alimentação veiculadas em propagandas. Ou seja, não perca nenhuma edição do Jornal do Veneno hahaha.
Apesar dos desafios serem enormes num país que ainda lida com a fome e a insegurança alimentar, as políticas públicas baseadas no Guia começam a ganhar corpo. Uma resolução de 2020 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) limitou a compra de alimentos ultraprocessados no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Vários municípios já aprovaram leis que proíbem a entrada dos colegas do biscoito recheado nas escolas, como o Rio de Janeiro. E o decreto que regulamenta a nova cesta básica excluiu os ultraprocessados da lista, com exceção da margarina.
👀 Pra contextualizar: série Mad Men, sobre as mudanças sociais e morais dos Estados Unidos na década de 1960, que influenciaram nossos hábitos alimentares mais recentes.
📝 Pra aprofundar: livro Nutricionismo, de Gyorgy Scrinis, pra entender as problemáticas de se reduzir os alimentos a nutrientes.
💡Pra tirar dúvidas: programa Prato Feito da Rita Lobo sobre como ter uma alimentação saudável sem carnes a partir das dicas do Guia Alimentar.
🧒 Pra debater com as crianças: a Maira Loureiro Polatto é doutoranda em Patrimónios Alimentares na Universidade de Coimbra, em Portugal, e montou um material maravilhoso com as recomendações do nosso Guia traduzidas pros pequenos.
🛒ME ENGANA QUE EU COMO ACHANDO QUE FAZ BEM
Na prática, há ultraprocessados indefensáveis e aqueles meio camuflados, que parecem nutritivos e até profissionais da saúde insistem em recomendar
Macarrão instantâneo, maionese, salgadinho de milho sabor churrasco, biscoito recheado de morango, refrigerante, sopas em pó, balas, pirulitos, salsicha, nuggets. Talvez a sua vizinha, um primo mais novo ou um colega de trabalho não tenham assistido a nenhum Globo Repórter sobre os alimentos ultraprocessados. Não reconheçam o termo nem saibam da existência do Guia. Mesmo assim, é bastante provável que já tenham ferramentas pra atestar que esse grupo de produtos não deve virar o padrão na rotina de ninguém.
Por outro lado, nessa categoria de ultraprocessados escancarados também há todo um esforço pra amenizar sua fama e adaptá-los às tendências da época. O miojo Turma da Mônica recebeu adição de vitaminas do complexo B, os cheetos agora são assados, os refrigerantes reduziram algumas embalagens e a quantidade de açúcar pra escapar dos alertas em forma de lupa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Até a maionese clássica ganhou versões 100% vegetais, algumas com óleo de coco de base, olhe só.
De toda forma, as mudanças na fórmula, as promessas da embalagem e as campanhas de marketing não foram capazes de reverter totalmente a reputação desses pacotinhos. Eles continuam sendo nossos ultraprocessados quase unânimes no mau sentido, em que pouco se contesta sobre seus malefícios à saúde.
O mesmo não se pode dizer dos pães e biscoitos com adição de grãos integrais, das bebidas e barrinhas proteicas, dos iogurtes saborizados, das granolas, dos embutidos com menos gordura, das carnes vegetais e de uma ruma de produto “zero açúcar”, “zero glúten”, “zero lactose”.
Nesse caso, entramos numa seara nebulosa, onde é mais fácil ser vítima de confusões e enganações. Pra alegar que se trata de um produto ultraprocessado só analisando a lista de ingredientes mesmo. Afinal, existem pães industrializados apenas processados. Existem granolas sem dezenas de aditivos químicos. Existe chocolate 70% com poucos insumos e existe Kit Kat Dark.
Essa bagunça alimentada pela publicidade também ganha o aval de inúmeros profissionais de saúde e coachs com milhares de seguidores nas redes sociais, especialmente do nicho esportivo. Como esquecer da coluna do professor Bruno Gualano, na Folha, que defende o consumo habitual de alguns ultraprocessados por serem “nutritivos”?
Especialista em fisiologia do exercício, o profissional insiste numa prática muito comum à área: reduzir os alimentos a fontes de nutrientes isolados, fenômeno que ganhou o nome de “nutricionismo”.
É como se fosse razoável trocar uma tapioca ou uma vitamina de banana, lanches que fazem sentido na nossa cultura alimentar, por uma caixinha da linha de bebidas yopro, da Danone, apenas por se tratar de uma fonte de proteína.
Mas nenhum rincão do Brasil cunhou a tradição de ingerir bebidas com concentrados de soro de leite. O hábito foi todo construído pela publicidade.
Essa premissa de encarar esse tipo de produto como “ultraprocessado do bem” também ignora sua lista de ingredientes atochada de substâncias industriais e aditivos alimentares, os impactos socioambientais da produção de leite, do que as vacas leiteiras se alimentaram, o quanto de antibiótico receberam, além das maneiras com que grandes multinacionais costumam tratar seus fornecedores e trabalhadores.
Aliás, nesse ponto está um dos maiores triunfos do Guia Alimentar para a População Brasileira: apontar que os malefícios de se transformar o consumo de ultraprocessados num padrão ultrapassam o desenvolvimento de doenças, a questão da saúde como um todo.
O nosso documento pioneiro reforça a tese de que alimentação envolve política, economia, cultura e meio ambiente. Isto é, não basta olhar apenas pra composição nutricional na hora de escolher o que comer. Por mais gramas de proteína ou vitamina ou cálcio que apresentem por porção, esses produtos fomentam um sistema alimentar insustentável.
Não é simples combater tanta desinformação e visão reducionista. Produtos com adição de proteína, por exemplo, conquistam profissionais da saúde também pelo investimento pesado na aproximação com a galera fitness. Eles marcam presença em feiras, congressos do setor, redes de academia, patrocinam competições.
A linha yopro, da Danone, possui até uma comunidade online, a Proteam, onde nutricionistas e educadores físicos podem se inscrever pra receber treinamentos, descontos, prêmios e lucrar 15% em cima das vendas que recomendarem. Detalhe: o Código de Ética e Conduta do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), no seu artigo 63, determina que:
É vedado ao nutricionista fazer publicidade ou propaganda em meios de comunicação com fins comerciais, de marcas de produtos alimentícios, suplementos nutricionais, fitoterápicos, utensílios, equipamentos, serviços ou nomes de empresas ou indústrias ligadas às atividades de alimentação e nutrição.
Pra fechar, por mais que estejamos tão distantes de uma educação alimentar satisfatória e de medidas amplas que restrinjam o consumo de ultraprocessados, como a regulação da publicidade, o Guia Alimentar funciona ainda pra filtrar os profissionais de saúde, cientistas, jornalistas, influencers e políticos que merecem o nosso engajamento. Falou de alimentação? Tem que fazer referência ao documento baseado em evidências que nos enche de orgulho.
Fechamos por hoje?
Ameeeei escrever essa edição. Li o guia alimentar do Uruguai inteiro na fase da pesquisa pra esse texto e fiquei toda arrepiada de encontrar taaanta semelhança com o nosso, de ver o fruto do trabalho de cientistas brasileiros sendo respaldado dessa forma.
Mas adivinhe qual país acaba de atualizar suas diretrizes e não incluiu o conceito de ultraprocessado? Pois é. É esse aí que você pensou e que já citei mil vezes hoje hahahaha.
Obrigada pela companhia, pelo apoio de sempre e por acreditar junto comigo que a gente pode construir um sistema alimentar decente pra todo mundo.
Um beijo e até sábado que vem,
Juliana.
Que edição maravilhosa (como todas são)! Compartilhei com a família, com um lampejo de esperança de que eles deixem de endeusar os ultraprocessados
Juliana, amei o seu texto! Fiz uma viagem no tempo por conta do seu texto. Meus pais buscavam sempre se alimentar de alimentos sem venenos, mas os ultraprocessados eram glamourizados (e ainda são). Vejo que muitos ainda caem nas falácias dos ditos alimentos saudáveis e que tantos outros simplesmente não leem a lista de ingredientes. Acredito que temos muitos desafios pela frente, mas é uma vitória que a gente tenha o nosso guia!