São João e contrastes #121
Um desabafo, uma nova pesquisa bombástica e três receitas tradicionais juninas sem leite condensado
Olá, venener. Bom sábado pra nós. Enquanto você estiver lendo esse texto, devo estar mais uma vez mergulhada em paçoca, pipoca, pamonha e forró. Realmente, o São João é o nosso festejo nacional com a maior entrega de quitutes imbatíveis, né? E como uma comunidade devota ao Guia Alimentar para a População Brasileira, nossa missão é aproveitar as tradições sem culpa e questionar as transformações pelas quais nossas iguarias juninas vêm passando nos últimos anos.
No fundo, essa conversa ultrapassa a questão da comida. Pode reparar como as festas populares têm ganhado mais adaptações privadas, encarecido de preço, reduzido ou elitizado o público. Se os carnavais de rua andam recebendo grades ou cordões de isolamento, se os desfiles de escolas de samba insistem em ampliar as áreas de camarote, as festas de São João também enfrentam o raio da segregação.
A escola onde fiz toda a Educação Básica organizava a grande festa junina do bairro, aberta a qualquer pessoa, mas agora está restrita a estudantes e familiares. Nem eu posso frequentar como ex-aluna. Nesta semana, nosso ícone do carisma João Gomes perguntou no meio do seu show no São João de Petrolina (PE) onde estavam as pessoas das periferias da cidade. Indignado com a manifestação tímida do público, concluiu que não tinha gente dos lugares onde ele cresceu ali. E estamos falando de uma festa financiada com dinheiro público.
Enfim, esta edição é um pequeno desabafo, mas também uma homenagem aos festejos de junho. Acredito muito que a gente só pode defender aquilo do qual tem orgulho.
Boa leitura! :)
- Tu quer saber mesmo? Nunca na minha vida passei um São João sem pular fogueira, sem assar milho, sem comer canjica, sem dançar quadrilha. […]
- Ocê gosta tanto assim do São João?
- Por demais!
(Trecho do livro Tocaia grande, publicado em 1984 por Jorge Amado)
De cachecol xadrez, casaco grosso e estômago vazio, cheguei na 3ª Festa de São João do Centro de Tradições do Norte e Nordeste no sábado passado, dia 21 de junho. Foi a minha primeira vez no evento que se originou do sonho de um maranhense que mudou para Florianópolis (SC) em 1998.
Seu José Nildo Barbosa Salles trabalhava como vendedor ambulante quando percebeu que seus conterrâneos recebiam um tratamento diferenciado - pra pior - por conta dos sotaques, especialmente da polícia local. Resolveu, então, construir uma base de apoio pra comunidade nortista e nordestina na capital catarinense, mas de olho também na integração com os nativos.
Assim surgiu um mega festejo junino popular com direito a barraca de tacacá, do lado da barraca de cuscuz, que esbarra na de pinhão. A ousadia dos organizadores ultrapassa a diversidade de ofertas culinárias. O objetivo agora é crescer a ponto de tirar de Maringá (PR) o título de maior festa de São João do Sul do Brasil.
Se vamos conseguir a façanha eu não sei, mas o evento em questão merece muitos aplausos. Em primeiro lugar, a entrada é gratuita. Em segundo, acontece no Centro, na mesma passarela onde em fevereiro desfilam carros alegóricos, baterias e passistas. No mesmo local ainda funciona um centro de acolhimento a pessoas em situação de rua.
O horário também é democrático. Dá pra levar a avó às dez da manhã, quando os shows de forró, piseiro e carimbó ainda não monopolizam os ouvidos. As crianças podem pular na cama elástica o dia inteiro e os jovens, que são maioria assim que o sol se põe, têm direito a entrar carregando suas sacolas plásticas com garrafas alcoólicas de qualidade duvidosa.
De bebida havia quentão de cachaça, de vinho e de jambu, além dos licores. Entre as opções de comida, o milho predominava, como deve ser, já que o São João despontou em terras brasileiras com o intuito de celebrar a colheita do cereal latino-americano, principalmente no Semiárido. O destaque ficou por conta de um quituteiro baiano que vendia oito diferentes tipos de pamonha.
Os preços, no entanto, me assustaram um pouco. Uma maçã do amor custava R$10, um copinho de 300ml de quentão saía por R$20. Talvez eu esteja comendo pouco fora de casa e perdendo a noção das coisas. Mas fui pesquisar e encontrei um levantamento do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV) sobre as diferenças de preços dos ingredientes básicos dos pratos típicos juninos em relação ao ano passado. De fato, estão em média 6,91% mais caros.
O açúcar, que contribui na textura, na conservação e no sabor de boa parte dos quitutes de São João está 9,17% mais custoso nos últimos doze meses por conta das questões climáticas, especialmente pelas queimadas e pela crise hídrica, que pressionam a produtividade. Fora o aumento do percentual de cana utilizado pra combustível, o etanol.
Por outro lado, o milho de pipoca vive um recuo de 8,87% em relação ao mesmo período de 2024, do mesmo jeito que o trigo, que baixou 14,95%, e que o leite condensado, 13% mais barato nesse ano.
A onipresença do leite moça - ou de suas versões genéricas - foi o único ponto fraco da festa pra mim. Em toda barraca havia pelo menos uma opção com leite condensado entre os ingredientes. O abençoado marcou presença na maior parte das cocadas de uma quituteira catarinense, no cuscuz de tapioca e no munguzá paraibano, além dos bolos de macaxeira das doceiras do Pará.
É difícil aceitar que uma sobremesa tão perfeita como a cocada, comum nas tramas realistas de Machado de Assis, que ganhou o Brasil pelos tabuleiros da quituteiras negras, e só levava coco ralado, açúcar e água, agora precisa receber um insumo exageradamente adoçado e super industrializado de uma multinacional suíça, a Nestlé.
Falando pelas minhas bandas, não posso me fazer de tão surpresa assim. A cultura alimentar catarinense é bastante alicerçada nos ingredientes e técnicas europeias. Daí vem o reinado dos lácteos, por exemplo. Tudo se prepara com nata, manteiga e creme de leite nesse recinto. Se as vacas parassem de dar leite por alguma razão, sobrariam duas ou três receitas pra contar a nossa história.
Nesse sentido, um produto à base de leite de vaca e altas doses de açúcar, que já sai numa textura cremosa de dentro de uma lata, só precisaria de uma campanha de marketing abusiva pra bombar por aqui. As propagandas começaram persuadindo as mães, depois, as professoras de culinária. Rolou muita promoção de livros de receitas próprias, de encartes que acompanhavam as latas, as promessas de economia de tempo. De tão apelativa, a campanha fisgou um país inteiro.
As latinhas ou caixinhas do líquido condensado se infiltraram tanto na doçaria tradicional brasileira ano após ano que nem os rincões onde os alimentos processados e ultraprocessados não costumavam ocupar tanto espaço à mesa escaparam.
Até o clássico mugunzá nordestino, ou canjica pros sudestinos, passou a ser encorpado com leite condensado, assim como o beiju de tapioca e a versão doce do cuscuz de milho. Sem falar nos bolos, pudins, o bombom de cupuaçu.
As festas de São João são mais um exemplo de que as cidades das regiões Norte e Nordeste continuam sendo mais firmes na defesa da cultura alimentar brasileira, em conservar os hábitos de gerações e os ingredientes regionais. Elas funcionam como uma espécie de obstáculo à entrada da avalanche ultraprocessada no país, mas já não têm a mesma força.
Um novo estudo divulgado nesta sexta-feira, dia 27, reforçou o alerta. Pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) analisaram a origem das calorias ingeridas por dia em cada município brasileiro. E concluíram que as regiões Norte e Nordeste ostentam os menores percentuais de consumo de ultraprocessados, mas representam o maior aumento dos últimos anos.
A população de Aroeiras do Itaim, no Piauí, é quem come menos pacotinhos cheios de aditivos do país. Apenas 5,7% das calorias que as pessoas locais ingerem por dia provêm dos ultraprocessados. Na outra ponta está Florianópolis (SC), com 30,5% das calorias consumidas vindo da turminha dos iogurtes saborizados. Aqui eu caí pra trás: todas as cidades catarinenses apresentaram um percentual acima da média nacional, de 20%.

Esse estudo revela um contraste enorme no país. O fator mais determinante pro consumo de ultraprocessados foi a renda. As cidades com mais gente ganhando acima de cinco salários mínimos apresentam os percentuais mais altos. Enquanto isso, as populações de municípios menos urbanizados e com menor renda por habitante seguem um padrão alimentar mais natural e tradicional, mas não necessariamente são mais saudáveis. Suas dietas são baseadas em arroz, feijão, farinha de mandioca, carnes e ovos, mas não dão conta de suprir as recomendações diárias de frutas, verduras e legumes.
Quando os grupos populacionais vulneráveis compram ultraprocessados, também costumam escolher produtos mais baratos, de pior valor nutricional. São os salgadinhos, biscoitos, nuggets e salsichas ou os produtos-maquiagem, como a mistura láctea que tenta imitar o leite condensado ou a bebida fermentada que tenta se passar por iogurte.
A excelente matéria conduzida pelo repórter Bernardo Yonesigue, pro jornal O Globo, sugere algumas leituras pra esses resultados. Segundo os pesquisadores entrevistados, mais renda e mais urbanização pode levar a mais pedidos de lanches via delivery, menos tempo pra cozinhar e mais chances de cair nas armadilhas marqueteiras. Aliás, esses produtinhos da moda camuflados de saudáveis, como as bebidas e barrinhas proteicas, os salgadinhos sem glúten e os chocolates zero açúcar são caríssimos.
As cidades sulistas se aproximam da tendência do Norte Global, como nos Estados Unidos, Inglaterra e Austrália, onde cerca de metade das calorias consumidas por seus habitantes são provenientes de pacotinhos coloridos.
Mas os dados dessa pesquisa têm uma limitação considerável. Eles saíram da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) referente a 2017-2018 e do Censo Demográfico de 2010, ambos do IBGE. Isto é, foram coletados antes da pandemia.
Só que esse período impactou tudo, a começar pelos nossos hábitos alimentares. Os aplicativos de comida explodiram, do mesmo jeito que a febre por produtos funcionais ultraprocessados. Fora as transformações na nossa relação com o trabalho e com as redes sociais, o que também influencia na escolha do que forra o nosso estômago. Então, quando esses dados forem atualizados, os percentuais que correspondem ao consumo dos parentes da margarina tendem a ser ainda alarmantes em todo o país.
Pra encerrar este lamento de forma propositiva e ainda no clima de São João, separei algumas receitas pra nos inspirar a fugir do leite condensado e de outras artimanhas marqueteiras que têm se apropriado dos nossos costumes. Seguem, abaixo, recortes de páginas do livro A comida baiana de Jorge Amado, escrito pela filha do mestre a partir de citações de pratos tradicionais nos seus livros e nas comilanças da família.
🔍 Pra acompanhar
Exemplo. Essa belíssima reportagem do Joio e o Trigo conta a história de famílias de Caruaru (PE) que insistem em cultivar alimentos sem veneno e em manter as tradições à mesa.
Genial. Dois cientistas de Uganda acabam de ganhar um prêmio por desenvolver um sachê natural que aumenta a vida útil das frutas frescas fora da geladeira. Sandra Namboozo e Samuel Muyitam criaram pacotinhos biodegradáveis apenas com ativos extraídos de plantas, como cravo, eucalipto e capim limão. O feito pode ajudar agricultores no pós-colheita ou empresas de transporte e armazenamento a frear o amadurecimento dos alimentos a evitar perdas, especialmente nos lugares quentes e em espaços sem refrigeração. A dupla fez testes inserindo os sachês em caixas de mangas, bananas, maçãs e laranjas e conseguiu aumentar em três vezes o tempo de durabilidade das frutas.
Água. Embora desesperadores, não chegam a ser surpreendentes os resultados do estudo sobre o Cerrado divulgado nesta semana. Coordenado pelo geógrafo Yuri Salmona, doutor em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (UnB), a análise concluiu que o bioma transporta agora um volume de água 27% menor do que na década de 1970. Isso significa que estamos perdendo 30 piscinas olímpicas por minuto, o suficiente para abastecer o Brasil inteiro por três dias e meio, por conta da transformação de vegetação nativa em soja e pasto. Sem contar que esse é o bioma responsável pelo abastecimento de 8 das 12 bacias hidrográficas brasileiras.
Leite de aveia. O estado de São Paulo concentra a produção de leite de aveia no país e era o único com incentivo fiscal para a produção desde 2023. Mas o governo Tarcísio de Freitas, estrela do bolsonarismo “moderado”, risos, incluiu a indústria de leites vegetais entre os setores que perderam a redução de impostos no início do ano. Ou seja, as caixinhas de leite de aveia pagavam 7% de ICMS desde 2023 e já passaram a pagar 18%, o que fez os preços dispararem no supermercado. É exatamente o oposto do que outros países vem fazendo, como a Alemanha, que já equilibrou as alíquotas dos leites vegetais e de origem animal.
É hora de dar tchau….
Aaaaaah! Na semana que vem vou declarar encerrado o primeiro semestre venener oficialmente. Isso significa que no próximo sábado teremos ele, o Quizz que resume os conteúdos do Jornal do Veneno dos últimos meses. Aproveita pra colocar as leituras em dia e gabaritar as questões, hein?
Passado o Quizz, esta bonita que vos escreve vai tirar duas semanas de férias. Dormir não estarei podendo pois mãe, mas pelo menos vou tentar colocar as pernas pra cima hahahaha.
Antes que eu esqueça, na próxima segunda tem as Colheradas de Junho pros apoiadores pagos. Aquele surto de divagações e recomendações culturais de todo mês hahahaha. Ainda dá tempo de assinar pra receber! Boraaaaa!
Obrigada pela companhia até aqui e pelo apoio de sempre.
Um beijo,
Juliana.
Já fiquei com vontade de fazer as receitas HOJE haha
Delícia e revolta, hahahaha. Saudade de pular fogueira em Santo Estevão, interior da Bahia, na casa dos meus tios. A rua sempre fez e faz até hoje concurso de quem arma a fogueira mais linda na porta de casa! Bom fim de semana❤️