Olá, venener. Bom sábado pra você! Por aqui a coisa andou meio tensa com a saúde da cria, precisei passar uns dias no hospital e deixar de publicar o jornal que não deveria existir na semana passada. Mas agora as coisas tão entrando mais ou menos nos conformes e consegui retomar o trabalho.
Antes de mais nada agradecer o engajamento e os comentários generosos da edição passada. Confesso que nem eu esperava tamanha insalubridade antes de iniciar a pesquisa sobre as quatro figuras em questão. Mas aproveito pra deixar claro, mais uma vez, que o objetivo nunca fui demonizar ninguém. Na verdade, acompanhei diversos perfis do nicho emagrecimento durante meses. Médicos, nutricionistas, halterofilistas, educadores físicos, coachs, gente de 50 mil a milhões de seguidores. Minha escolha pelas quatro influenciadoras se deu porque todas vendem algum produto ou serviço próprio, de curso à suplemento, repercutem bastante na imprensa e deram uma boa repaginada nos últimos anos.
Também recebi vários comentários no Instagram questionando o nome da Gabriela, ex-Pugliesi, na edição, já que o conteúdo dela teria melhorado e não faria sentido associá-la a outras influenciadoras de valores conservadores. Me disseram até que ela comemorou o Oscar do filme Ainda estou aqui hahahaha. Ora, gente. Acho mais do que obrigação ter parado de recomendar que as pessoas comam peladas na frente do espelho pra se sentirem culpadas. Mas as publicidades não sinalizadas permanecem. As alegações de benefícios milagrosos de suplementos, sem comprovação científica, também continuam lá, todos os dias. E um olhar um pouco mais cuidadoso também vai identificar muitos valores faria limers.
A edição de hoje, inclusive, traz mais nuances pra essa conversa.
Boa leitura! :)
🌎 Demanda por ovo aumenta, mas disparada nos preços envolve múltiplos fatores
Enquanto isso, agência da ONU alerta pro impacto da gripe aviária na saúde e na segurança alimentar global
Em tempos não muito distantes, era esperado que pessoas abastadas ou em galopante ascensão social ostentassem vieiras, presunto parma, entrecôte, quiches, salmão selvagem, costela de porco ao molho barbecue. No mínimo, um peito de frango. Ou não se importassem com refeições e só encaixassem qualquer coisinha entre um copo de uísque e uma taça de espumante, a exemplo de Don Draper, da série Mad Men, e Shiv Roy, de Succession.
Como é comum aos Estados Unidos fugir à regra global no quesito hábitos alimentares, também não surpreende que Bill Gates sempre prefira um Big Mac a qualquer outra opção disponível no planeta e que Gwyneth Paltrow escolha beber um caldo de ossos todos os dias.
A partir da década de 90, os alimentos passaram aos poucos a serem vistos como meras fontes de nutrientes isolados, a acompanhar alegações exageradas e integrar padrões alimentares focados em otimizar a saúde corporal. A indústria alimentícia, é claro, têm sua cota de responsabilidade no processo, já que precisa reinventar nossos desejos e necessidades para manter e aumentar seu faturamento.
O pesquisador australiano Gyorgy Scrinis chama esse período de era do “Nutricionismo funcional”. Ele ajuda a explicar por que uma pessoa com um patrimônio estipulado em R$400 milhões cometa algo totalmente impensado há 50 anos: escolha comer ovos em todas as refeições, como a influenciadora Virgínia Fonseca. Também joga luz nas razões que levam uma adolescente de 16 anos, que namora um dos maiores herdeiros do país, a ter orgulho de expor uma geladeira monotemática nas redes sociais. Estamos falando da influenciadora Duda Guerra, namorada de Benício Huck.
No dia 27 de novembro do ano passado, Duda compartilhou sua farta rotina alimentar com os seguimores. O café da manhã levava uma fatia de pão, pra dar energia antes do treino, uma omelete com cinco ovos, mas apenas uma gema, já que está evitando ganhar gordura. No almoço, a norinha da Angélica escolhia comer sete ovos, descartando seis gemas, acompanhado do combo feijão, arroz, batata doce e outros legumes. De lanche, era a vez da vitamina de banana com whey protein. E pra encerrar o dia, mais um ovo completo e sete claras com uma pimentinha por cima, pra dar um tempero.
Nada disso chega aos pés da garota propaganda de ovos mais famosa do país. A modelo de fisiculturismo e ex-BBB Gracyanne Barbosa tem nos músculos o seu principal instrumento de trabalho e explora justamente a rotina peculiar de dieta e treinos intensos para consolidar sua identidade nas mídias. São cerca de 40 ovos em 24 horas, 14.600 por ano. Isso representa 55 vezes o consumo médio da população brasileira em 2024.
A galinha criada para fins comerciais no país é uma espécie de origem asiática introduzida no continente americano durante a colonização. D. João VI, que desembarcou com a família em 1806 por aqui, era um grande fã de canja. Mas até o século XIX, a avicultura limitava-se a pequenas criações para agradar europeus saudosos de suflês e para contribuir na subsistência das famílias.
A avicultura despontou primeiro em Minas Gerais, à medida que a mineração expandia. Rio de Janeiro e São Paulo não quiseram ficar pra trás e passaram a se destacar na produção na década de 30, época em que iniciaram as modificações genéticas dos bichos a partir da importação de ovos dos Estados Unidos, que já abrigava a maior criação de aves para fins comerciais do mundo. Em 1934 surgia a Perdigão, seguida da Sadia dez anos depois. Na década de 50, a Seara inaugurou o primeiro frigorífico de grande porte na cidade que dá nome à empresa, em Santa Catarina.
No momento, o Brasil abriga em torno de 1,5 bilhão de aves de criação, número que abarca os frangos, bichos criados para produzir carne, e as galinhas poedeiras, focadas na produção de ovos. Cascavel, no Paraná, lidera disparada, com 21 milhões de frangos. Há 63 vezes mais aves de criação do que humanos na cidade.
Segundo a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), nossas galinhas renderam 57 bilhões de ovos no ano passado. Em 2025, a projeção é de 2 bilhões a mais, pra alegria da turma da Gracy. Demanda é o que não falta. Foram cerca de 263 ovos consumidos por habitante em 2024, média que tem tudo pra chegar a 272 até dezembro desse ano.
Os fatores que explicam o reinado dos ovos nas receitas e na rotina da população brasileira antecedem os objetivos fitness. Em primeiro lugar, nossa culinária foi forjada pelas cozinhas francesa e portuguesa, totalmente dependentes desse insumo. Da França importamos o omelete, os ovos mexidos, os suflês, os doces com claras em neve. De Portugal, as fritadas, o pastel de natas, o quindim, os bolos, empadões…
Os alimentos de origem animal sempre estiveram associados à sustância e fartura na nossa história. Quando a carne vermelha dispara de preço, o poder de compra do país perde fôlego ou há uma crise econômica em curso, a exemplo da pandemia de covid-19, as famílias tendem a priorizar os ovos como substituição às carnes.
Esse alimento de preço acessível ainda costuma marcar presença com regularidade no cardápio das 178,5 mil escolas públicas brasileiras e é facilmente encontrado à venda em qualquer feira, supermercado ou bodega de esquina. Nas propriedades da agricultura familiar, que representam 77% dos estabelecimentos agrícolas do país, ou em terras de populações tradicionais, as roças costumam dividir espaço com a criação de galinha caipira para aumentar a segurança alimentar e possibilitar uma renda extra. Afinal, as aves são mais baratas de comprar e manter do que um boi ou um porco, crescem mais rápido e botam ovos mesmo sem cruzar.
Apesar da tradição ter perdido força, nas semanas da quaresma, do fim do carnaval à páscoa, católicos e outros fiés de vertentes cristãs também escolhem se abster de carnes como forma de sacrifício e passam a comprar mais ovos. Nesse sentido, já é espero que a demanda aumente nessa época do ano e os preços inflem.
Mas não dá pra ignorar o fator marqueteiro nessa conta. Acredito que ninguém vai cair pra trás ao descobrir de onde saíram as primeiras pesquisas financiadas pelo setor agropecuário destacando os benefícios do consumo de ovos, classificando os abençoados como superalimento, associando sua ingestão à emagrecimento e ganho de massa muscular por ser a proteína mais “eficiente”. Isso, do mesmo recinto que inventou o refrigerante e agora é governado por um bilionário fascista.
No país da Madonna, existe um centro de pesquisa inteiro dedicado aos ovos que oferece cursos gratuitos pra nutricionistas e participa ativamente do desenvolvimento de diretrizes alimentares governamentais, o Egg Nutrition Center. A Eggland's Best, empresa de ovos fortificados, banca estudos há anos com o intuito de desmistificar a relação dos ovos com o colesterol. A American Egg Board também acabou de apoiar financeiramente uma pesquisa que concluiu que a ingestão de 12 ovos por semana ao longo de ano não aumenta o risco de doenças cardiovasculares.
Assim como no caso dos agrotóxicos, ultraprocessados e chás detox, o lobby estadunidense sempre desembarca em terras brasileiras. Outra estratégia marqueteira em voga por aqui diz respeito ao mercado dos ovos de galinhas supostamente felizes. Maior produtora de ovos da América do Sul e décima do mundo, a Mantiqueira Alimentos tem investido pesado no setor do bem. A empresa vende 4 bilhões de ovos por ano e, desde 2020, começou a testar uma linha de “galinhas livres”. Aliás, 50% da marca acaba de ser comprada pela gigante JBS.
A Mantiqueira-JBS destinou R$30 milhões à campanha publicitária Happy Eggs - é hora de ciscar, lançada no ano passado. As peças circulam pelos programas Caldeirão do Mion, Domingão do Huck, Masterchef Brasil, além de canais fechados como Sport TV e Home & Health. A chef Paola Carosella e a nutricionista Andréa Santa Rosa fecharam parcerias pras divulgar a linha de produtos, assim como Diego Ribas, ex-jogador do Flamengo que toca o podcast 10 & Faixa.
Uma reportagem investigativa do portal O Joio e o Trigo, porém, mostrou que diferentes empresas não têm oferecido condições aceitáveis pras suas galinhas e pros funcionários que lidam com elas, mesmo nesse modelo “feliz”. Embora tenham certificados de bem-estar animal, os casos averiguados pelo jornalistas reuniam uma série de violações trabalhistas e condições absurdas pros bichos.
O ovo convencional brasileiro sai de granjas que funcionam no sistema de baterias. As galinhas costumam viver cerca de um ano e meio em gaiolas, têm o bico cortado e comem apenas ração, composta de soja transgênica, milho transgênico, vitaminas e minerais. Quando param de produzir, são abatidas para virar farinha e servir de ração pra outros bichos. Cabe destacar que a Anvisa não monitora a quantidade de resíduos de agrotóxicos em produtos de origem animal. Então não temos dados sobre a quantidade de venenos no omelete brasileiro, que viriam da alimentação das galinhas.
Há muito o que questionar nesse processo de transformação de animais em mercadorias, o que inclui controlar a sua capacidade de reprodução, seu ambiente de desenvolvimento, sua convivência com os pares e modificar seus genes para que rendam alimentos com características específicas. Mas a criação de espécies confinadas acompanha uma série de problemáticas que extrapolam a questão ética. O estresse da aglomeração leva ao uso contínuo de antibióticos para conter doenças, o que junto com a produção de dejetos resulta na poluição do solo e risco de contaminação de águas subterrâneas, rios, lagos e açudes.
Pesquisadores de diferentes partes do mundo, como o biólogo Rob Wallace, estudam esses ambientes e alertam para a sua relação com o surgimento de vírus, incluindo o novo coronavírus (Sars-CoV-2), a gripe suína e a gripe aviária. Isso porque a junção de milhares de animais no mesmo local sob condições adversas funciona como um banquete para microrganismos, mutações e contágios extremos.
Enquanto escrevo esta edição, o planeta lida as consequências de um novo surto do H5N1, uma das variantes que causam a gripe aviária. O vírus que surge das granjas também já foi identificado em mamíferos selvagens, animais domésticos, animais de zoológico e gado leiteiro. No Brasil chegou até nos leões marinhos, mas nunca infectou humanos. O Instituto Butatan pediu autorização à Anvisa no ano passado para dar início aos testes da vacina, tendo em vista os alertas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).
Mesmo que as infecções humanas continuem raras, a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA) e o Centro Europeu para a Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) encontraram marcadores genéticos que podem aumentar a capacidade do vírus de se adaptar a mamíferos, o que inclui humanos. No entanto, não há evidências de transmissões de humano pra humano até o momento.
É a terra do hambúrguer quem vive um alastramento recorde da doença. O país já precisou abater pelo menos 166 milhões de aves de criação e viu as dúzias de ovos sumirem dos mercados. Ao contrário do Brasil, o mercado de ovos é muito mais concentrado por lá, da produção ao varejo. Com o monopólio, a demanda altíssima e uma crise sanitária rolando, as empresas inflam os preços e ainda recebem indenizações do governo pelas perdas. Ou seja, a situação é desesperadora pras pessoas, mas vantajosa pros produtores. O escritor e ativista Cory Doutorow apontou que existe todo um mercado em cima da exploração da escassez de ovos nos Estados Unidos, uma mistura de inflação com ganância.
A conta também chegou pra nós. Contamos nesse momento com o fator quaresma, o calor extremo que estressa os bichos e reduz a produção de ovos, a obsessão proteica, a disparada no preço da carne bovina, o agromarketing em favor das proteínas animais, o aumento no preço dos insumos pra ração das galinhas, decorrente da crise climática e Guerra da Ucrânia, e mais esse adendo: o crescimento das exportações, sobretudo pro país do brownie. A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) alega que a exportações de ovos cresceram 57% em fevereiro.
Resultado: o ovo ficou 19,44% mais caro nos supermercados brasileiros na prévia da inflação de março, como informa o balanço divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta quinta-feira (27). No acumulado do ano, os preços já subiram 25,88%.
O fim do período religioso pode apaziguar o cenário, claro, mas pense comigo. São muitos os alimentos com o preço em alta e nenhuma projeção de redução no valor das carnes nos próximos meses. As famílias brasileiras devem continuar a priorizar os alimentos mais acessíveis mesmo com a redução do desemprego e aumento do salário mínimo. Fora que nossos varejistas também são mordidos pelo mosquitinho da ganância e daqui a pouco mais influenciadores bombados adotam a dieta hiperproteica, né? Então não dá pra dizer que a perspectiva é boa pros ovos, muito menos pras galinhas.
🔎 Pra acompanhar
Cultura alimentar. As regiões Norte e Nordeste são o nosso grande escudo contra o avanço dos ultraprocessados. Mesmo assim, não conseguem fazer milagre.
Demência. Estudo fresquinho investigou a relação entre casos de demência, incluindo Alzheimer, e sua relação com desigualdades socioeconômicas. Conclusão: países de média e baixa renda concentram cerca de 2/3 dos casos mundiais. Os fatores de risco para demências com mais evidências até o momento são baixa escolaridade, perda auditiva, colesterol “ruim”, depressão, sedentarismo, diabetes, tabagismo, hipertensão, obesidade e abuso de álcool.
Retrocesso. Deputados estaduais do Mato Grosso ignoraram um parecer contrário do Ministério Público e promoveram uma das maiores aberrações negacionistas do ano. Aprovaram um projeto de lei que reduz a distância mínima pra aplicação de agrotóxico em áreas habitadas ou fontes de água. Nas pequenas propriedades, o limite ficou estipulado em ZERO. Sem distância mínima. O pequeno agricultor ganhou um empurrãozinho pra se contaminar com mais intensidade. E as áreas de preservação, nascentes de água e animais tão ainda mais expostos.
É hora de dar tchau, mas nem tanto hahaha.
Na próxima terça, dia 31, tem Colheradas de Março só para apoiadores pagos do Jornal do Veneno. Não vai rolar uma palavra sobre agrotóxico e apocalipse climático por lá, graças a deusssssssssss hahahaha. Só desabafos mais pessoais e relatos do que ando vendo, ouvindo, lendo e comendo. Ainda dá tempo de assinar pra receber no seu e-mail, viu?
Obrigada pela atenção, pela companhia e apoio de sempre.
Um beijo e até semana que vem,
Juliana.
Este histórico da produção de ovos me deixou sem vontade de consumir. Muito bem exposto. Gente, infelizmente, dinheiro não traz mais profundidade nem mesmo consciência. Perder a dimensão da comida como herança da nossa ancestralidade é muito pobre. Parafraseando Caetano Veloso: nossa pátria é o nosso alimento. Depois do JV passei por uma descolonização do gosto culinário e retomei minhas raízes. Quando meu avô era vivo, fazia um suco delicioso da casca do abacaxi. Lendo o JV senti o estímulo de me aventurar a fazê-lo. Quando tomo este suco me encontro com esta dimensão deste cuidado tão especial da minha vida. O estudo que você nos trouxe sobre saúde mental e vulnerabilidade social não está em desacordo com o que Basaglia e Fanon disseram. Abaixo ao capitalismo que tratora TUDO!!!
Mais um conteúdo com profundidade e solidez que me faz pensar sobre o mundo a partir de um alimento. Obrigada por nos informar com tanta qualidade!